sexta-feira, dezembro 21, 2007

da natividade

Não posso deixar de pensar, sem encontrar resposta para tal coisa, porque na natividade penso mais nos defuntos do que durante a época pascal.
Chego perto do Natal e penso tanto na falta que me fazem os que já partiram…, e na falta que poderei vir a provocar se eu própria vier a partir…, e noutras causas e faltas que possam relacionar-se com a morte, e por mais que tente pensar que esta quadra é de vida… sem querer, penso sempre e sempre na desdita.
E fecho os olhos e concentro-me vezes a fio: pensa na vida, vá, pensa na vida... mas é escusado, porque mesmo de olhos fechados e concentrada, penso imediatamente na morte!
Desisto exausta.
Então encho a casa de luzes e de estrelas e de luas, muitas… E fico quietinha lá debaixo das luzes a esforçar-me por não pensar em nada senão nas ondas cintilantes que preenchem o meu espaço. Não devo pensar em nada no natal, depreendo, porque só consigo, por mais que tente, pensar na morte.
E penso na morte dos meus, e na morte dos outros, e nas tantas mortes já morridas e nas que ainda estão por morrer…
Sacudo-me para livrar-me dos pensamentos ensombrados, quase pecaminosos e, por momentos, eis que até consigo! Nessas alturas, e por segundos, vejo então, e mentalmente, a imagem de um menino dador de vida a nascer numa noite relentosa, mas com calores, mas logo me tange o gosto um fel meloso, e sinto a presença dos que partiram, dos que não comem, dos que tremem, e dos sozinhos, dos tantos que padecem dos tantos padecimentos possíveis, e a imagem daquele bambino rotundo e alegre dos quadros renascentistas se desvanece.
A folha de rosto do meu natal psicológico é de rudeza e de dor, pestilento e cavernoso, mas com as luzes que coloco portas adentro, construo um mundo imaginário e fico nele, ponho nele os meus bonecos de vida, enquanto eles não sabem que, afinal, no natal pensamos mais nos nossos mortos do que durante a quadra pascal.
É por isso que do fundo de mim desejo a todos que consigam fechar os olhos e pensar na vida, durante esta quadra marcada a tons de um rubro vivo e infinito, como a … morte.

terça-feira, dezembro 18, 2007

Jazz Klub

Na noite de 11 de Dezembro, no Jazz Klub Tygmont, em Varsóvia, assisti a um concerto que não esquecerei tão cedo, pelos Krzysztof Herdzin Trio. Não há dúvida de que em Varsóvia tudo pode acontecer, e ainda bem, por agora, já bem longe das tantas ruínas sangrentas...

quinta-feira, dezembro 06, 2007

Thanks Lucien

AbrAxas



assim parto para Varsóvia
cheia de utopia na bagagem
e com uma mala na mão cheia de textos
e de imagens
e de cigarros
hasta...
c.

I'm a little girl...

Air - Once Upon a Time Video



«No time before it's too soon
No time after it's too late
Time's getting old, time's over now
Don't try to be on time
Don't try to run after time
Time's getting on, time's over now

I'm a little boy, you're a little girl
Once upon a time
I'm a little boy, you're a little girl
Once upon a time
Time's getting on, time's over now
I'm a little boy, you're a little girl
Once upon a time
I'm a little boy, you're a little girl
Once upon a time
Time's getting on, time's over now

I'm a little boy, you're a little girl
Once upon a time
I'm a little boy, you're a little girl
Once upon a time
Time's getting on, time's over now
I'm a little boy, you're a little girl
Once upon a time
I'm a little boy, you're a little girl
Once upon a time
Time's getting on, time's over now ...»

segunda-feira, novembro 26, 2007

ode à fadiga

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Se me perguntardes:
Porque andas fatigada?
Nem saberei responder.

Direi apenas que a vida fatiga tanto que perdes a própria medida do teu cansaço.
E que te cansas porque estás viva, sem propriamente te cansares dela.
É como que um feitiço, um mistério, uma sinistra assombração, essa de te sentires fatigada por nem saberes porquê.
E de facto não sabemos porque nos fatigamos porque não queremos fazer uma lista, um rol tremendo de situações que nos cansam, uma longa e fatigante lista de assuntos que nos enfadam, uma longínqua folha de texto com vários pontos de emoções que nos assolam e que nos esgotam, que gastam um bom punhado de células que morrem, a cada letra que escrevemos.
Porque andas fatigada?, perguntas tu.
Não saberei dizer-te, porque estou cansada demais para te dar respostas.
Certo é que chegarei ao porto, mesmo cansada, e que no porto encontrarei a âncora, mesmo que velha, e que lá ficarei presa, ó altíssimo, e que dela me cansarei, porque continuarei viva.

da orientação ou vocação para as artes VII

Nunca poderemos solver este mistério de artista genial. E nem o próprio criador conhecia a origem do seu engenho artístico desassossegando-se, não obstante, com essa sua característica de homem invulgar, facto que o levou à produção obsessiva de obras de arte inexcedíveis em qualidade. Na obra poética que nos legou, Miguel Ângelo demonstra esta sua preocupação, quando imagina ser a criação artística o fruto de um êxtase metafísico.

A especulação em torno da origem do génio artístico fascinou, de facto, imensos teóricos, ao longo da historiografia artística. Autores como Petrarca, Boccacio, Dante e, como vimos, o próprio Miguel Ângelo na Itália humanista, ou Francisco de Holanda, no Portugal de Quinhentos, entendiam a pintura como uma arte de origem divina e o pintor (como alter deus), pintando por divina força e imitando o homem à semelhança de Deus Eterno que foi, justamente, o primeiro pintor.

Durante muitos anos, particularmente durante e após o século XVI, os grandes artistas eram entendidos como uma espécie de santos, incarnando, nas suas obras e no seu próprio ser, a revelação divina. E esta visão do artista como fabricador de mundos não está, ainda hoje, longe dos nossos horizontes teóricos. Crê-se que o pintor possui uma capacidade para ver o mundo que está longe da nossa visão profana.

Já Francisco de Holanda entendia que o maior pintor não pinta aquilo que vê na natureza mas antes aquilo que vê com seus olhos interiores, aquilo que vê no seu entendimento solitário e quieto, aquilo que vê como uma aparição vinda do céu. Trata-se aqui de uma verdadeira teoria do génio, ou do pintor como um ser sagrado, descrita pelo próprio autor, numa (suposta) conversa com Miguel Ângelo e escrita em 1548: os de engenho já trazem do seu próprio trabalho, quando nascem, gosto e amor àquilo que são inclinados e que lhes pede seu génio [Francisco de Holanda, Diálogos de Roma, edição de José da Felicidade Alves, Livros Horizonte, Lisboa, 1984].

Trata-se aqui de uma visão neoplatónica e transcendentalista da criação artística que culminou na aberta classificação de alguns artistas como divinos (e nesta parentela de talentos evangélicos incluem-se o divino Miguel Ângelo, ou o divino Morales, na vizinha Espanha) mas que não está longe de alguns pressupostos que vieram a desenvolver-se, como a noção de alguns poderes inatos que criam no sujeito uma necessidade, ou uma inclinação para determinada tarefa cumprida através do génio.
Os estudos da psicologia e da sociologia abriram estes caminhos de verificação que se entendem como mais concertantes neste registo de pesquisa sobre a vocação ou orientação para as artes. Dos dotes transcendentais passaram então, e definitivamente, a aceitar-se outro género de factores, como o mundo das inclinações, ou das aptidões, ou das motivações que se inter-relacionam com o ambiente exterior enformante e que determinam uma solução mista entre a genética e o emolumento social.

Esta vontade de oferecer-se ao mundo não é comum a todos os indivíduos. Muitos há que querem, efectivamente, dar-se, expelir-se, explicar-se mas falta-lhes o que eles não conseguem encontrar na sua pesquisa de si e angustiam-se, frustram-se e fustigam-se, podendo depois enveredar por outro caminho de substituição. Mas outros indivíduos conseguem escapar a essa frustração dando lucidez às aptidões mais secretas e, mediante um árduo trabalho de sistematização, exercitando-se quase doentiamente, conseguem ultrapassar-se numa conquista do mundo e numa abertura efectiva de si, para o real. Resta depois outro cômputo de homens, feito daqueles que não sentem, nem nunca sentiram, qualquer necessidade de criação.

Numa desejada síntese, podemos então verificar existir uma vocação para as artes e uma vocação para a Arte no seu sentido mais absoluto e extremo. Qualquer uma dessas vocações, que possui uma origem marcadamente psicossocial, pode trabalhar-se ou, por outro lado, pode ficar encoberta no caminho da vida dos sujeitos que a possuem. Se essa vocação conseguir despertar no sujeito, ele deve sistematizar essa inclinação através do estudo e do exercício mas, por outro lado, ela pode existir, ou persistir silenciosa, apagada na vontade consciente de verter-se e tem, nessa altura, de procurar-se, na orientação, para dar-se a conhecer.

Não obstante todas estas sugestões, sem o constrangimento para completar-se o mundo e sem o talento para o voo por sobre os homens, não consegue fazer-se um artista.

Coimbra 3 de Maio de 2001.

sexta-feira, novembro 23, 2007

com um brilho nos olhos



há pouco menos de um ano, o meu pequeno Afonso, então (e ainda) com 4 anos, participou na sua primeira experiência como ilustrador de livros, em conjunto com os seus colegas de escola. O livro ficou muito bem e ele contentíssimo, claro, pensando que escrevera um livro de histórias inteirinho (:fui eu que fiz!).

Amanhã é a apresentação desse interessante volume titulado "descobre as plantas!" (Museu da Ciência, UC, Coimbra) e lá vamos nós, para brindar com sumo fresco e sorrisos ardentes de uma paixão sem limites, é sua primeira participação numa publicação em livro ilustrado com cores benovolentes!

da orientação ou vocação para as artes VI

Como historiadora, podia arrolar comprovadas famílias de artistas, apontar nomes e obras, de pais com filhos arquitectos, escultores, pintores e músicos, para depois verificar como a orientação e a herança genética dos criadores foi magnânima no processo de carreira individual dos descendentes. De facto existiram, e ainda existem, inúmeras famílias de artistas. E que quer isto significar? Que este género de aptidão circula nos genes dos indivíduos, ou que o ambiente familiar determinou a vocação em esteira para as artes? Poderemos nós conjecturar que a laboração nas artes surgiu num determinado jovem porque a família o coagiu a enveredar por esse caminho de vida através da estimulação de determinadas capacidades?

Sabe-se que existe uma grande correlação entre os factores ambientais e sociais, e a hereditariedade, pelo menos ao nível de influência no coeficiente de inteligência e no comportamento, entre outras áreas mas, e ao nível do desenvolvimento da capacidade para produção de obras de arte?

A historiografia da arte desenvolve, se bem que desanexada dos propósitos objectivos da psicologia, uma metodologia que pode ajudar-nos nesta apreciação já que, de uma forma geral, quando pretende fazer-se a biografia de um artista, procuram-se os motivos para o desenvolvimento das aptidões artísticas verificadas no indivíduo em apreço. Pesquisam-se primeiramente os parentes mais chegados, recuando-se depois, se necessário for, a gerações anteriores. Procuram conhecer-se as actividades, a cultura, o meio económico e social e as inclinações desses sujeitos, de forma a entender-se mais capazmente esse agente de cultura em causa. Mas o historiador não pesquisa estas fontes para demonstrar as componentes genéticas do artista, fazendo-o, em parte, por aferição subjectiva, e por outro lado para integrar o sujeito num lugar e num espaço sociocultural enformante, que também é o seu lugar na história.

Numa considerável amostra de sujeitos pesquisados ao longo dos vários séculos precedentes, conclui-se que, de facto, o artista biografado possuía pelo menos um parente com demonstrada tendência para as artes —sem que, todavia, esse parente tenha, necessariamente, de possuir inegáveis talentos artísticos [este fenómeno da esteira familiar de artistas compromete-se, em determinadas conjunturas históricas, com motivos de razão prática e social, mais do que com processos estritamente biológicos, ou psicológicos. Durante a Idade Moderna, era comum que o filho, ou que um apaniguado, seguisse o ofício já enraizado no seu núcleo social mais chegado por comprometimento económico e social. Exemplos radicais como os que podem verificar-se para a época moderna portuguesa dos arquitectos Arruda, da extensa família artística dos Frias, dos parentes Diogo Pires-o-Velho e o-Moço, da família Ruão, etc., não constituem excepção, e fazem parte de um largo cômputo extensível no tempo e no espaço, porque este fenómeno verificou-se um pouco por toda a Europa coeva].

Mas se encontramos infinitas esteiras de descendência artística, também conhecemos outros tantos casos que nos permitem duvidar que estamos perante uma regra: o famosíssimo pintor renascentista Piero della Francesca era filho de um sapateiro, e Botticelli de um curtidor de peles.

Vasari, um artista e teórico das artes da Itália quinhentista escreveu, na sua Vida dos Pintores, publicada em 1550, que o mestre de Giotto, chamado Cimabue, era oriundo de uma nobre família florentina. O seu pai enviara-o a um frade seu parente que ensinava noviços em Santa Maria Novella, mas o jovem Cimabue interessou-se mais pelo trabalho dos artistas que ali pintavam na capela dos Gondi, abandonando o estudo para passar o dia inteiro a ver labutar os referidos pintores, pelo que seu pai, bem como os ditos pintores, verificando que ele tinha aptidões para a pintura, acabou por ceder à sua vocação, tendo Cimabue, ajudado pela sua natureza muito inclinada para a arte, ultrapassado muitíssimo o estilo da sua época. Outro caso conhecido é o do próprio Giotto que, sendo pastor, pintava ovelhas muito ao natural nas pedras dos pastos da Toscana, em Vespignano, tornando-se depois num dos mais famosos artistas do gótico italiano.

Apesar de tudo, a historiografia da arte também permite concluir que de facto existe uma forte aclimatação fraternal que influencia grandemente o desenvolvimento das aptidões futuras de um, ou de outro artista de maior ou menor fortuna. Podemos imaginar o exemplo, comum ao longo da história, do pequeno filho nascido de uma família de lavradores e colocado, ainda muito jovem, na oficina de um artista para aprender o ofício, no cumprimento de uma aspiração paterna que queria ver o filho vingar, social e economicamente, no mundo arredado da lavoura.

Durante um largo período da história, esta metodologia de ensino e de ingresso no mundo das artes era radical, já que desde a Idade Média mais longínqua até ao dealbar da contemporaneidade, nalguns lugares da Europa recenseada, a criança era literalmente posta em casa do seu mestre, raras vezes era visitada pelo pai ou por outro parente, e ficava em permanente contacto com as lides familiares e artísticas do seu mestre, contactando com as obras em produção, ou com os modelos e com livros de ensinança e com o grupo de encomendantes e de mecenas. A criança era afastada do ambiente familiar original e era, certamente, muito influenciada pelo novo mundo do seu mestre, alterando-lhe, de certa forma, grande parte das motivações primeiras e do seu comportamento. Não obstante, e independentemente da fortuna deste jovem aprendiz, não podemos contabilizar o seu grau de aptidão inicial e posterior para o desempenho da arte.

Num exemplo mais concreto temos o caso, muito divulgado pela da especulação romântica, que gravita em torno da origem do talento de Miguel Ângelo Buonarroti. Discute-se enormemente sobre a sua educação, sobre o facto de ter sido colocado, ainda menino, num lar situado nas cercanias de uma enorme pedreira, e sob a guarda de um canteiro, facto que lhe terá desenvolvido o gosto pela roca, o gosto pela descoberta das formas ocultas nas pedrarias, o gosto pelo pó da pedra e aquela visão do mundo sui generis, que foi a deste magnífico e inigualável homem das artes. Aliás, o próprio Miguel Ângelo pronunciou-se sobre esta afortunada marca de vida quando, em conversa com Vasari, lhe confessou que se tivesse sido criado noutro lugar, longe do pó da pedra alva, que para ele era tão vital como o leite de sua ama, nunca teria enveredado pela escultura...

Ora, se ao invés da sua educação em casa da ama, Miguel Ângelo tivesse sido acompanhado pela sua família de classe média e burocrata da Toscana renascentista, como teria ele desenvolvido aquela apetência tremenda pela escultura? Aliás, para a família Buonarroti, o desempenho as artes, que então eram entendidas como manuais, constituía uma desonra vergonhosa.

Qual foi então o papel do seu ingénium pessoal, ou da orientação, promovida no convívio de nascença com a pedra, no contacto com Domenico Ghirlandaio ou com Granacci, seus primeiros e superadíssimos mestres, no processo do desenvolvimento do seu talento? Muitos biógrafos de Miguel Ângelo acreditam apenas no seu auto-didatismo, estendendo-se o seu talento evangélico no contacto fecundo com as obras de arte, e com a filosofia da casa de acolhimento durante o final da infância e no dealbar da adolescência, na corte dos poderosos Medici.

quinta-feira, novembro 22, 2007

terça-feira, novembro 20, 2007

a nico






When I remember what to say
When I remember what to say
You will know me again
And you forget to answer

When I remember what to say
When I remember what to say
You will know me again
And you forget to answer

You seem not to be listening
You seem not to be listening
The high tide is taking everything
And you forget to answer

When I remember what to say
When I remember what to say
You will know me again
And you forget to answer


Nico, you forget to answer

Yeah...

Matthew Dear "Don and Sherri"

quinta-feira, novembro 15, 2007

tradução electrónica sénior

não vendo eu o lugar certo
para colocar o “A” de sentido e de caminho e de fluxo
encontro estranhos feitios para o depositar
em palavras sem o “A” de ânsia, azia e solidão

do negro evaporo o “S”
de solicitude, de desvelo, de desejo, de salvação.

para arrancar o “N” de noz
tomaremos ganas de outras letras
das letras que ficam sós…
as sobejantes
Oz


Obrigada por preferir este tradutor, e
volte sempre

porque sim

Siouxie and The Banshees Dazzle

quarta-feira, novembro 14, 2007

que vergonha



Jacques de Gleyn o Velho, Vanitas, 1603 (cf. www.metmuseum.org)



***



o Museu Nacional de Arte Antiga e o Nacional de Arqueologia encerram salas de exposições por falta de pessoal vigilante (cf. nótícia)... certamente seguir-se-ão outros e, certamente, outras falhas podem fazer colapsar um sistema que já é débil, e que se debate em lutas (por estas e por outras, mas sempre por falta daquilo que faz mover os mundos...) de forma a conseguir manter-se de pé. num só pé, diria.

este não é o único problema com se altercam os grandes, e os menos grandes museus portugueses. também não é um problema exclusivo da rede de museus nacional, mas trata-se de uma questão mais abrangente, porque envolve a teia imensa dos bens patrimoniais imóveis, bem como os recheios móveis, praticamente todos por inventariar. se abrirmos bem os nossos olhos conseguimos ver que as paróquias, as capelas, os mosteiros e os conventos que povoam os nosso país se escondem, e escondem os seus tesouros feitos também de esculturas e de pinturas guardadas, porque abrindo-os, podem perde-los de vista. e se num dia ainda temos a sorte de poder admirar uma esculturinha devocional pousada há anos numa peanha algures no interior de uma capela de porta aberta, no dia seguinte ela desprendeu-se do lugar e eclipsou-se. por isso quem vem a portugal, ao país velhíssimo da beira europeia voltada ao mar, para visitar o seu vasto património religioso não pode entrar, ficando-se à beira das portas fechadas às sete chaves.

de facto, este país cuidou sempre pouco do seu legado cultural e, especialmente, da sua tão rica herança patrimonial. os poucos cidadãos que deram, e os que ainda dão, porque ainda os há, as suas vidas por esta causa desmerecida constituem-se como uma casta quase delirante, entendida como um bando de alienígenas que pouco fazem pelo progresso. e esbracejam sem poder fazer mover os ares.

os dias que correm deveriam até ser diferentes, depois da unesco ter considerado em portugal, e por escrito, que as artes e o património são valores imprescindíveis para a construção de cidadãos de facto, e de corpo inteiro, aliciando ao estudo para a sua compreensão e valorização, com consequente preservação. mas estas directivas levaram à abertura de novas licenciaturas em artes, e no seu estudo generalizado, sem ser medida a justa entrega desses novos formados à realidade.

às vezes chego mesmo a sentir vergonha por ter nascido no meio deste canto terráqueo. as situações inacreditáveis a que assisitimos nesta aresta quebrada do mundo espelham um conformismo tão indolente que chega a ser arrepiante, e que é altamente desmotivador. e o que arrepia ainda mais é mesmo este estado de espírito de desapego pela memória. trata-se de uma memória selectiva, a nossa, ainda presa aos grandes feitos, mas que desdenha do material que remanesce, o material vivo e sólido que marca e que testemunha vidas, e que morre em outras vidas se não tratarmos dele. o que portugal preserva são algumas estórias de homens magníficos há muito desaparecidos, das imensas e complexas teias familiares que povoam a nossa história, gosta ainda muito das tramas políticas que se geraram, ou que se degeneraram, dos feitos esventrando mares, e de guerras mais ou menos afortunadas, coisas de encher os olhos quando não querem ver. mas ao mesmo tempo, portugal desdenha subtilmente o que esses e outros homens construíram de mais pequeno em tamanhos. afinal, vivemos a mesma agonia cultural, embora com renovadas formas, a que estivemos sujeitos durante anos, reclamando tempos novos de liberdade e de democracia.

afinal, esta eresta do mundo que acaba a europa para encontrar os altos mares, não é um lugar de fascínios e de paixões, porque se faz de homens ásperos e indiferentes e tão cheios de soberba. reina neste velho pedação de chão um desamor tão agreste que faz saltar dos olhos, daqueles tais poucos sujeitos, delirantes, os que esbracejam sem conseguir fazer mover os ares, uma quieta e silenciosa gota de água insalubre, porque eles sabem que não é o fumo que comanda a vida.

terça-feira, novembro 13, 2007

Quem falou em conflito femuro-acetabular...?

devo continuar o caminho sem abrandar o passo,
sem aumentar o peso para me deixar ir com os dias,
imparável e sem sentir a dor, porque ela é perfeitamente abominável num quadro de tempos mornos,
antes do fim,
ou ainda em auroras de vida... espero.

E se me falardes em ossos, cartilagens e articulações, fala baixinho,
para que eu não consiga ouvir a tua voz,
ó altíssimo,
porque cá de baixo, onde ainda estou, só quero ver e sentir coisas bonitas.

quinta-feira, novembro 08, 2007

das outras ciências






«Primatas em Congresso Ibérico», in Diário das Beiras, Coimbra, 17-XI-2007, p. 17.

Este título, que anuncia um congresso de primatas em Peniche, faz-me pensar que deve ser um encontro científico no mínimo sui generis. Será que ainda vou a tempo de inscrever-me no evento?

quarta-feira, novembro 07, 2007

Tintoretto, de Itália a Santo Tirso

Pode ler-se aqui o artigo publicado sobre o achamento de uma Adoração dos Magos, de Jacopo Tintoretto, no Mosteiro beneditino de Singeverga, Santo Tirso, Portugal.

terça-feira, novembro 06, 2007

Persepolis



De Marjane Satrapi, Persepolis, 2 vols. Pantheon, 2003.

Em cinema desde Junho (para cá virá depois, creio) esta é uma, ou a história de Satrapi que leio muito devagarinho desde o fim do Verão, porque tenho medo de chegar ao fim.
À Diva, com um abraço de saudades,
Carla

Life 2.0


Life 2.0
Colocado por manukeo

da orientação ou vocação para as artes V

Nem todos os indivíduos possuem a capacidade de ver o mundo nas suas entrelinhas, de procurar nele aquilo que não há. Nem todos os sujeitos se desdobram em curiosidade inexcedível, e nem todos conseguem transformar as suas imagens interiores em expressão artística. Não se trata aqui de domínio da técnica, no seu entendimento mais amplo mas, antes de tudo, de aptidão para o voo, de aptidão para o domínio do sonho, de aptidão para o descobrimento da natureza e do Homem, de aptidão para o domínio do Ser na sua essência.

No decurso do processo criativo, não há dúvida de que o artista tem de conseguir deixar de lado o poder abrasivo da razão, para dar asas à intuição e à sensibilidade, entendidas como matrizes de laboração imprescindíveis. Veja-se o exemplo que um pintor que, ao enfrentar o branco, o preenche com uma série de pontos, de linhas e de formas que, paulatinamente, vão dando corpo ao desenho que materializa a imagem que o autor pretende conceber. Neste movimento de materialização —ou, se quisermos, de objectivação dos conteúdos subjectivos—, cada linha também vai determinando o caminho das que se lhe seguem, podendo alterar substancialmente a configuração primeira que, por vezes, chega a exceder a ideia inicial do autor. Um plano de obra ideado não é o seu resultado final e, não raras vezes, a própria obra altera-se durante o seu processo de natural desenvolvimento. É que a forma pode criar novas formas, recriar a própria imagem interior do artista, e dar-se como outra e completamente nova configuração.

Ninguém sabe o que leva o artista a escolher determinado caminho de execução em detrimento das incomensuráveis possibilidades de escolha, ou seja, ninguém pode explicar as opções que o artista toma, no decurso da sua criação, ou da explanação de determinada Ideia, que tem de encorpar-se para dar-se a conhecer. Neste processo, que lugar ocupará o acaso, como fonte ininterrupta de sugestões e de caminhos? Sabe-se que o processo criativo carrega em si (e sobre si) inúmeras hesitações, avanços e recuos e, também por este motivo, um constante desatino e ansiedade que, por sua vez, fazem avançar o discurso que se realiza.

Nesta sequência vertiginosa, por vezes tão distante de qualquer discernimento lógico, caberá apenas ao autor saber qual será a sequência de trabalho adequada, ou caberá à própria pintura saber que lugar ocupará a nova tinta? Competirá apenas ao artista entender quando deve terminar a sua obra, ou dir-lhe-á a obra que se resolveu, assumindo-se na sua totalidade? O que sabemos é que cumpre ao pintor escolher, mais ou menos racionalmente, emotivamente, impulsivamente, ou intuitivamente, o ritmo e a velocidade das suas impressões, o peso da mão a marcar o texto, ou a espessura das camadas de tinta. E que mistério é este senão o verdadeiro caminho da intuição em plena liberdade de acção, onde o diálogo entre a criação e o criador consubstancia um lugar incomum.

Um indivíduo criativo é, como já se disse, um indivíduo curioso, e esta curiosidade vai alimentar-lhe a criatividade, gerando-se assim uma espiral ininterrupta de causas e de efeitos. Será por isso que o artista —entendido como um ser realmente excepcional e único, dotado de um talento evangélico para a visão global da realidade, ou de um talento evangélico para as artes—, é um ser permanentemente insatisfeito, tocando a genialidade à custa de uma interminável inquietação interior?

Tendencialmente, ao inibir-se a curiosidade numa criança, espartilha-se a sua liberdade de procura de si e do mundo, limitando-se o desenvolvimento do seu impulso epistemológico. Este impedimento, para além de corromper a tendência da criança para o conhecimento, também lhe tolhe a criatividade artística e científica. O livre exercício da curiosidade é, também, e neste caso, o livre exercício da criatividade.

Orientar um sujeito para as artes é, então, estimular-lhe desde cedo o exercício da curiosidade e da criatividade? É estimular o sujeito para o desembaraço cerebral na construção de imagens —entendendo-se aqui o conceito imagem como um filme cerebral ou, como uma ressonância interior do indivíduo? É sabido que esta estimulação gera, necessariamente, uma grande desenvoltura epistemológica, e que pode facilitar o caminho para o desenvolvimento criativo, na sua concepção mais abrangente mas, todavia, não pode comprovar-se que esta estimulação resulte em ganhos efectivos no terreno da vocação para a realização de obras de arte na verdadeira acepção da palavra.

Sabe-se que, justamente, os homens não são todos iguais em capacidades, em impulsos, em aptidões, em tendências e em gostos. Cada indivíduo é um depositário determinado desde o seu primeiro dia uterino, consubstanciando-se como um único ser biológico que depois, desenvolvendo-se em determinado contexto conjuntural, vai adquirindo outras e tão múltiplas características que mais ainda o fazem divergir do restante emolumento psicossocial.

As aptidões e as capacidades, na sua significação mais ampla, variam de indivíduo para indivíduo. São determinantes que vão condicionar as suas reacções a estímulos, as suas actividades, as suas carências, o seu comportamento e até mesmo o seu sistema de valores, as emoções, a produtividade, etc.. Mas a existência de uma aptidão para a música, por exemplo, não faz do indivíduo um compositor emérito, podendo fazer dele um músico, se lhe estimularmos, através do ensino da música e do exercício, essa mesma capacidade. À aptidão deste indivíduo, devem então juntar-se a aprendizagem e a sistematização, ou o exercício, mas, ainda assim, ninguém garante que este músico consiga compor, ou produzir obras de arte inexcedíveis. A avaliação da estrutura e das capacidades dos indivíduos pode levar-nos a predizer sobre os seus comportamentos futuros e sobre a possibilidade de aquisição de determinadas habilidades. Mas, ainda assim, ficamos sem saber como surgem as habilidades nos homens. Certamente que por condicionalismos externos e por condicionalismos genéticos mas não podemos discernir, com facilidade, até que ponto somos mais determinados pelas condições ambientais, ou por factores estritamente imanentes.

Numa justa conclusão, devemos dizer que apenas sabemos que as capacidades individuais constituem o resultado de uma combinação inter-relacional de factores inatos e ambientais que se misturam sem grande rigor matemático.
Dizer que um artista se faz não nos basta, porque julgamos que um artista não se faz do nada. Far-se-á ele se lhe faltar aquilo que o pode distinguir em género e em aptidão, em raciocínio, em intuição, em compreensão do espaço, em visão do mundo, em necessidade de completar o real e em consciência? E como podemos nós, do nada, fazer o pão? É que apesar de comummente ser defendido que o filho de um peixe possui qualidades que o fazem saber nadar, nem sempre é garantido que esse descendente consiga abraçar os oceanos, ondular eficazmente até ao termo da idade, podendo morrer pela boca, ou viajar apenas em pequenos rios, ou tender a embaraçar-se nas ardilosas redes que o esperam.

quinta-feira, outubro 25, 2007

porque sim

Brian Eno + David Byrne = Mea Culpa

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da orientação ou vocação para as artes IV

Mas este efeito que a obra de arte tem o poder de provocar estende-se por vezes até ao próprio artista, que por tantas ocasiões se vê superado, quando a vê depois de feita. Não raras vezes pensa o criador que não foi ele que criou. Não raras vezes, o criador não sabe porque criou. Não raras vezes, o criador emociona-se com o produto da sua obra.

O território encantado da criação artística pertence apenas a alguns sujeitos que, instigados por uma quase mágica vontade, revolvem constantemente o mundo e revolvem-se em cada dia de trabalho criativo, por vezes tão penoso e doloroso (porque o trabalho do mundo pesa tão invisivelmente nos braços do autor), para se verterem e oferecerem ao mundo em corpo e em alma.

Esta dádiva do corpo ao mundo (Cf. Merleau-Ponty, O olho e o espírito, Vega, Lisboa, 1997) no trabalho artístico surge, afinal, por vocação ou por orientação, versus obrigação, educação, sistematização, compromisso familiar, etc.?

É do conhecimento do quotidiano que quando um sujeito que possui uma determinada aptidão vocacional que lhe escapa, levando-o depois a percorrer a vida por outros caminhos, acaba por sentir-se frustrado, desanimado e pouco produtivo. Neste caso, o facto de recorrer-se a um conselho de orientação de vida, ou de aptidão vocacional, cumpre um papel indesmentível no processo da procura de si. Mas o exclusivo da orientação vocacional não transforma o indivíduo, possibilitando-lhe apenas uma abertura de caminho de vida que estava submerso.

Então todos aqueles que produzem obras que se consideram artísticas, fá-lo-ão por vocação, ou porque foram orientados para esses exercícios? Esta questão coloca-se neste âmbito, como para todas as escolhas que os indivíduos fazem ao longo das suas vidas.

Porque escolhe um sujeito ser isto ou aquilo?
Existe, de facto, em determinados indivíduos, um marcado impulso para as artes e, nestes casos, qual será o incentivo para o saciamento deste impulso? É a criação artística um trabalho que se executa independentemente de quaisquer valores estético-artísticos, ou de êxito e de aplauso, ou de necessidade de compreender e de conquistar o mundo, ou de comunicação interior ou exterior?

É chegada a altura de falar sobre o papel da criatividade (entendida como capacidade de conceber produtos ou soluções originais), da imaginação (entendida como a capacidade de retenção do ausente), da fantasia (entendida como capacidade de reelaboração do real) neste envolvimento de vertigem para criação, seja ela artística ou não artística. De facto, a criatividade é comum a todos os homens, tratando-se de um fenómeno inerente a quase todos os mecanismos psíquicos do ser humano, desde o funcionamento perceptivo à elaboração criativa mais complexa. Todos os sujeitos sãos estão em constante actividade criativa, na medida da sua disponibilidade para entender, recriando e organizando os impulsos recebidos cerebralmente. Falar de criatividade é considerar, intrinsecamente, processos como o da inteligência, da imaginação, da sensibilidade, da selecção, da intuição, da memória, da motivação, etc. E falar de criatividade é falar de curiosidade, de talento para a procura do conhecimento do mundo, para a procura do eu e do outro, para a procura de tudo e, no seu mais elevado grau, de tudo quanto é surpreendente e novo. Neste processo de cognição alargada deve, então, reservar-se um espaço especial aos lugares da intuição [Aquilo a que habitualmente chamamos intuição é, numa referência a António Damásio (— O Erro de Descartes, Emoção, Razão e Cérebro Humano, Publ. Europa-América, 1995, p. 199), o «misterioso mecanismo através do qual chegamos à solução de um problema sem raciocinar»] e da curiosidade.

Um indivíduo criativo é um sujeito curioso e, por isso mesmo, que tende a buscar incessantemente o conhecimento manuseando, em concomitância, a intuição e o raciocínio. Curiosíssimos são todos os que demandam pelos terrenos da ciência elevada, como marcam os exemplos de génio de Newton ou de Einstein.

No caso específico do artista, sabemos tratar-se de um ser altamente curioso e acrescentado em sensibilidade, manuseando a intuição com inteira liberdade, e que revela preocupações acrescidas, porque as obras de arte encerram e explanam um verdadeiro sistema de valores (estéticos, históricos e artísticos, etc.).

A criatividade do artista, tal como a do cientista, também vai de encontro às lacunas da realidade ou seja, o artista procura conceber aquilo que falta ao mundo e que o completa. A criatividade do artista permite-lhe observar o mundo sem fronteiras (com um olhar do interior, ou com um terceiro olho, ou com um terceiro ouvido...), recolher o que nele há de mais sensível e consumir essa recolha que se mescla com os sabores da sua intuição, da sua emoção, da sua vida e do seu sistema de valores. No processo de materialização da Ideia (numa noção de visão, ou de filme interior), o artista usa de uma inteligência que lhe é específica, utilizando as técnicas de que dispõe para a realização da obra, exprimindo a sua imagem interior, que é única, porque ajustada ao seu sistema pessoal de conhecimento e de interpretação do real. A linguagem artística serve-se, então, da intuição e do raciocínio ao nível da expressão.

quarta-feira, outubro 24, 2007




quieta
fica quieta
escuta
quieta
escuta
fica quieta
agora pára

quinta-feira, outubro 18, 2007

das outras artes

"Homo sapiens come marisco há 165.000 anos e tinha utensílios complexos" (in Público, 18-X-2007).

Se o Homo Sapiens come marisco há tanto tempo, seria bom que pudéssemos jantar juntos um dia destes...

quarta-feira, outubro 17, 2007

da orientação ou vaocação para as artes III

Será a obra de arte o produto de um ímpeto?

E que ímpeto tempestuoso este, que transforma o indizível em texto escrito; que transforma o silêncio em drama e em compaixão; que transforma o mundo que depois se vê em outro mundo, tão admiravelmente novo, e que é o reflexo de um pensamento que convertido em acção, e depois, e novamente, em pensamento...

Que impulso é este, tão diferente dos comuns impulsos de sobrevivência fisiológica?
Para alguns autores, este impulso para as artes faz parte de um cômputo alargado de impulsos aprendidos, como são alguns medos adquiridos, ou a motivação para o sucesso.

Mas este impulso para o trabalho artístico pode ainda revivescer como uma manifestação de um comportamento intrinsecamente motivado de satisfação da curiosidade, ou de satisfação de motivações psicológicas relacionadas com a realização pessoal, ou com a busca do sentido da vida e de compreensão do eu e dos outros no mundo, ou com a necessidade própria de comunicação, no seu sentido último? Poderá este impulso relacionar-se com uma manifestação de um desejo desenfreado, de um desejo de recriação do mundo, para que o seu recriador possa viver e situar-se nele, ou para senti-lo como seu?

E este impulso para as artes, para a realização daquilo que não existe e que aparentemente nem fará muita falta, se relacionado com a evolução tecnológica do mundo, é um dom, um furor transcendente, ou um outro qualquer fenómeno mais imbricado e ainda mais recuado na consciência ou, por outro lado, tratar-se-á do fruto de uma orientação cerrada, empreendida no interior do núcleo familiar ou outro, que filtra as actividades, e que determina os gostos e as atitudes dos sujeitos que se condicionam?

Com o fito neste problema teórico, podemos apenas levantar tímidas hipóteses de solução e, nesse sentido, também podemos rememorar algumas situações comprovadas pela historiografia artística. Mas como seres humanos empenhados, podemos ainda intercalar alvitres (desde que) com graus de razoabilidade eficazes, no sentido de alcançar um desejável, ainda que muito limitado, entendimento dos fenómenos que nos circundam.

Devo confessar, neste contexto, que raras vezes procuro entender como é possível ser-se um talentoso artista. Aliás, nunca pensei muito nisso, porque na presença de uma obra de arte fico ofuscada pelo brilho do espírito do indivíduo que, escudado por detrás da sua obra, me ajuda efectivamente a rever o mundo, enfeitiçado com formas, com tintas ou com gestos, com palavras ou com sons. E sob esse efeito magnético que as obras de arte me provocam, atinjo um lugar sem tempo e estanco, perplexa, e suficientemente longe de mim para que possa alcançar qualquer outro pensamento mais objectivo sobre outro qualquer assunto. Sob as flamas da obra de arte me sinto vã.

terça-feira, outubro 16, 2007

definição I

«A beleza convulsiva terá de ser erótico-velada, explodente-fixa, mágico-circunstancial, ou não será beleza.»

André Breton, O Amor Louco, trad. Luíza Neto Jorge, Estampa, Lisboa, 1987.

sem dizer mais nada

http://www.youtube.com/v/RcyKlRv1BRk">

Metrópolis de Fritz Lang, com música de Michael Nyman (Time Lapse)

Da orientação ou vocação para as artes II

O facto de um indivíduo possuir uma aptidão para as artes não quer significar que ele venha a tornar-se um artista, na verdadeira acepção da palavra. A aptidão para uma determinada tarefa ilustra apenas um cômputo de capacidades físicas e psicológicas que um sujeito possui para um desempenho e não, necessariamente, o dom de alma evangélico que o faz ultrapassar a mediania.

Mas o talento artístico tout court não possui, neste e em tantos outros contextos, características comensuráveis. O talento artístico ou se tem, ou não se tem. Pelo contrário, a maior parte dos sujeitos pode, desde que fisicamente apetrechados, aprender a bordar, a pintar, a esculpir, a fazer coisas aprazíveis, adequadas e muito correctas, mas «uma obra assim produzida jamais possuirá uma alma», como escreveu Kandisnsky em 1954. A actividade produtiva em causa traduz-se numa imitação que é, para o artista, semelhante àquela que empreendem os macacos: «Na aparência, os seus movimentos são iguais aos dos homens: o macaco senta-se, debruça-se sobre um livro, folheia-o com ar grave. Mas esta imitação não possui qualquer significado.» (Kandinsky, Do espiritual da arte, D. Quixote, Lisboa, 1998, p. 21).

Uma obra de arte irrestrita ou, se quisermos, aquela que lhe merece o nome, começa na Ideia dos poucos indivíduos que vêem o mundo com outras lentes, com outras formas, cores e medidas, com outros sons que são inaudíveis, ou inimagináveis para os restantes. Uma obra de arte total é a que defende a alma de toda a vulgaridade, vertendo-se e derramando-se numa generosa oferenda ao mundo. É que o artista abeira-se do mundo quando é suscitado por ele. Schumann verificou que a vocação do artista é projectar luz nas profundidades do coração humano. Neste caso, poucos são os que conseguem alcançar essa luz, manipulá-la e vertê-la, transfigurada em texto entendível e decifrável pelo entendimento dos que a recebem.

E que místico chamamento é este que procura e que consegue lançar-se no que de mais íntimo há no homem, que procura observar a vida para a dar a conhecer, que se rebusca em íntimos suores de dor, para fazer saltar para o mundo aquilo que entende ser como essencial ao crescimento da humanidade? Que chamamento é este que faz com que um determinado sujeito se revolva (ou se resolva?) noutro mundo, naquele que aparentemente não corresponde ao precipitar da economia, naquele que, à partida, parece não querer fazer girar o mundo... Que precipício é esse, tão deslumbrador, que arrasta civilizações inteiras, na busca de uma forma de representação simbólica que diga tudo. Que mecanismo misterioso é aquele que leva à escrita obsessiva e a duras penas, ou à composição musical, à necessidade de recriação do mundo através de gestos organizados e miméticos, dentro dos sons.

Da orientação ou vocação para as artes I (um artigo em vários capítulos)

«[...] Um [dia] hei-de analisar isto, um dia hei-se examinar melhor, discriminar, os elementos constituintes do meu carácter, pois a minha curiosidade por todas as coisas, aliada à minha curiosidade por mim próprio e pelo meu carácter, leva a uma tentativa para compreender a minha personalidade.»

[Fernando Pessoa,Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal, edição de Richard Zenith, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003, p. 87 (registo no diário de 30 de Outubro de 1908)]


A vocação ou a orientação para a produção de obras de arte é uma questão clássica e que se coloca a todos quantos pretendem compreender os fenómenos relacionados com o comportamento, com a integração social, com a própria realização artística, com a criatividade, com a motivação para as artes, com a consciência e com a inteligência artísticas, mas também a todos aqueles que se preocupam com questões relacionadas com o discurso e com as representações simbólicas.

Trata-se de um assunto verdadeiramente amplo, porque abrange outras preocupações que as várias ciências —entendidas como recursos de pesquisa trans-disciplinares—, particularmente a psicologia (e a psicanálise), a história e a sociologia da arte, ou também a estética e a teoria das artes procuram debelar. E quando procuramos entender os sujeitos que possuem o impulso para as artes, somos também forçados a debruçar-nos, com maior ou menor empenhamento de método, sobre o que é o fenómeno artístico, e sobre o que torna uma obra de arte diferente das restantes realizações da humanidade.

segunda-feira, outubro 15, 2007

terça-feira, outubro 09, 2007

words for a real life

Se me perguntardes o que é importante na vida ficarei sem voz, e sentir-me-ei desolada por só saber pressentir o que nela importa mesmo.

Direi depois, com alguma facilidade, que importa na vida conseguir intuir o belo e deixar cair no pano uma lágrima de prazer quando nela nos envolvemos.

Dir-te-ei ainda, mais quieta, que o que é mesmo importante na vida é dar colo, tanto colo aos filhos, e depois conseguir deixá-los ir, com uma lágrima tranquila que apaziguará essa dor.

Dir-te-ei que importa na vida a arte, porque te liberta e torna-te incandescente, fazendo-te acreditar que dos tantos homens que há na terra só alguns importa mesmo que não morram.

Que na vida importa que a salvemos, se gostarmos mesmo dela.

Direi depois, mais a custo, que na vida é importante saber recomeçar, recomeçar sempre, porque ela mesma é o recomeço.

Seguir-se-á uma inevitável pausa rubra, porque me darei conta de que afinal não entendo mesmo nada sobre o que é importante na vida, das coisas simples, direi depois em meio-tom, porque há tantas coisas que não as saberei escolher, e aborrece-me ter de realizar arrolamentos sem uma ordem criteriosa de importância para dar às escolhas feitas.

E depois estalará em mim um fortíssimo padecimento, quando, ainda rubra, e em meios-tons de desvelos, o concluir, dizendo-te seguidamente, que o que importa mesmo na vida é o amor.
E que nada fará sentido se não fordes capaz de achar esse derrame de vida, para que, com ele, te possas libertar dela.

segunda-feira, outubro 08, 2007

no escuro

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deitei-me no colo do céu para lá dormir uma noite
mas tive medo

terça-feira, outubro 02, 2007

sexta-feira, setembro 28, 2007

Exercícios espirituais



Olhai então para dentro fixamente para que possas encontrar o fio que une os teus olhos à razão e aos lumes mais intensos.
Desse grande fio, se o encontrardes, soltar-se-á, embora de uma forma difusa, a imagem completa da tua vida.
E dessa imagem, que na altura te ocorrerá depressa demais, restará, na melhor das hipóteses, um sabor amável, e um som muito apagado, como que imperceptível.
Se essa for a resposta, restarás sã.
Mas se dessa imagem se soltarem profecias mais robustecidas, como os jorros de reproduções nítidas do teu destino, renova o olhar para dentro fixamente, para que possas reencontrar o fio que une os teus olhos à razão e aos lumes mais intensos, repetindo o exercício até que não vejas, nem sintas nada.

quarta-feira, setembro 26, 2007

Duas palavras (no Panteão) a deus



«O Karma é o encantamento (desastroso) das acções (das suas causas e dos seus efeitos).

O budista quer afastar-se do Karma; quer suspender o jogo da causalidade; quer ausentar-se dos signos, ignorar a questão prática: que fazer? Não deixo, eu próprio, de pô-la a mim mesmo e suspiro por esta suspensão do karma que é o nirvana. Também as situações que, por acaso, me não impõem qualquer responsabilidade de conduta, por mais dolorosas que sejam, são recebidas numa espécie de paz; sofro, mas pelo menos nada tenho para decidir; a máquina do amor (imaginário) funciona aqui completamente sozinha, sem mim; como um operário da era electrónica, ou como o cábula do fundo da aula, apenas tenho de estar presente: o Karma (a máquina, a aula) sussurra diante de mi, mas sem mim. Na própria infelicidade, posso, num momento muito breve, arranjar um cantinho de preguiça».

Roland Barthes,Fragmentos de um discurso amoroso, trad. Isabel Pedrosa, Ed. 70, Lisboa, 2006, p. 85

terça-feira, setembro 25, 2007

WAS? ...



«Antes de me ter encontrado, Irrsigler não tinha, por exemplo, a mínima noção de música, de nenhuma arte, no fundo absolutamente de nada, nem sequer da sua estupidez. Agora, Irrsigler sabe mais que todos esses parladores de história de arte que todos os dias aqui vêm e enchem os ouvidos das pessoas com o seu cretinismo histórico-artístico. Irrsigler sabe mais que esses asquerosos peroradores da história de arte que todos os dias destroem para toda a vida, com o seu palavreado, dezenas de classes escolares que vão impelindo à sua frente. Os historiadores da arte são os verdadeiros destruidores da arte, disse Reger. Os historiadores da arte arengam tanto tempo sobre a arte que acabam por, com a sua arenga, a levar à morte. A arte é levada á morte pelos historiadores da arte. Meu Deus, penso eu muitas vezes, aqui sentado no banco, quando os historiadores da arte passam por mim conduzindo os seus rebanhos inermes, como são de lamentar todas essas pessoas, às quais precisamente estes historiadores da arte fazem perder, perder definitivamente, o interesse pela arte, disse Reger. A profissão de historiador da arte é a mais perversa profissão que existe e um historiador da arte arengador, e só há realmente historiadores da arte arengadores, precisava de ser corrido a chicote, corrido do mundo da arte, disse Reger, todos os historiadores da arte são os verdadeiros destruidores da arte e nós não devemos permitir a destruição da arte por aqueles que, intitulando-se seus historiadores, nada mais fazem do que destruí-la. Quando ouvimos um historiador da arte, sentimos náuseas, disse ele, ouvindo um historiador da arte, vemos como é destruída a arte sobre que ele arenga, com a arenga do historiador da arte a arte atrofia-se e é destruída. Milhares ou mesmo dezenas de milhares de historiadores da arte dilaceram a arte com a sua arenga e assim a destroem, disse ele. Os historiadores da arte são efectivamente os seus assassinos, se escutarmos um historiador da arte, participamos na sua destruição, onde quer que um historiador da arte se apresente, a arte é destruída, esta é que é a verdade [...]».



Thomas Bernhard, Antigos Mestres, trad. José ª Palma Caetano, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003, pp. 54 e 55

quinta-feira, setembro 20, 2007

Tributo a Friedrich Nietzsche

«Deixando de lado o facto de ser um décadent, sou igualmente o seu contrário. A minha prova disso é que, entre outras coisas, escolhi sempre instintivamente os meios correctos nas piores condições; ao passo que o décadent em si escolhe sempre os meios que lhe são nocivos. Como summa summarum, eu era saudável; como mero ângulo, como especialidade, era décadent. A energia para o absoluto isolamento e a libertação das condições habituais, a coerção feita a mim mesmo de não me deixar curar, tratar, medicar ─ tudo isso trai a incondicional certeza instintiva sobre aquilo de que estão eu acima de tudo necessitava. Peguei em mim mesmo, restituí a mim próprio a saúde: a condição para tal ─ todo o fisiologista o admitirá ─ é estar fundamentalmente são. Um ser tipicamente doente não pode tornar-se são, e menos ainda curar-se a si mesmo; para quem é tipicamente saudável, estar doente pode, pelo contrário, ser mesmo um enérgico estímulo de vida, de mais vida. Assim me surge agora efectivamente aquele longo período de enfermidade: descobri, por assim dizer, de novo a vida, avaliei-me a mim próprio, saboreei todas as coisas boas e até mesmo as coisas pequenas, como não é fácil que os outros as possam saborear ─ da minha vontade de saúde, de vida, fiz a minha filosofia… Atenda-se pois ao seguinte: os anos da minha mais baixa vitalidade foram aqueles em que deixei de ser pessimista; o instinto do auto-restabelecimento proibiu-me uma filosofia da pobreza e do desânimo… E onde se reconhece no fundo a boa constituição? Em que um homem bem constituído é agradável aos nossos sentidos; em ser talhado de uma madeira que é ao mesmo tempo dura suave e olerosa. Apetece-lhe apenas o que lhe é benéfico; o seu agrado, o seu prazer cessa quando a medida do suportável é ultrapassada. Adivinha remédios contra o que causa danos, utiliza casos nocivos em sua própria vantagem; o que não o mata torna-o mais forte. Compila instintivamente a sua suma a partir de tudo o que vê, ouve, vive: é um princípio selectivo, e deixa de lado muitas coisas. Está sempre na sua sociedade, lide ele com livros, homens ou paisagens: honra ao escolher, ao admitir, ao confiar. Reage lentamente a todo o estímulo, com aquela lentidão que lhe ensinaram uma longa circunspecção e um orgulho deliberado ─ perscruta o fascínio que dele se aproxima, mas está longe de lhe sair ao encontro. Não crê nem a “infelicidade”, nem na “culpa”: sente-se realizado, consigo, com os outros, sabe esquecer ─ é suficientemente forte para que tudo redunde em seu maior proveito. ─ Muito bem, sou o contrário de um décadent: pois descrevi-me justamente a mim mesmo.».

Friedrich Nietzsche, Ecce Homo, trad. Artur Morão, Ed. 70, Lisboa, 2002, pp. 23 e 24.

sexta-feira, setembro 14, 2007

beyond Steve Reich music

ANONYMUSBOSCH

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Caleidoscópio rodante
de giros suaves
diz-me assim porque é que só dormindo se chega aí ao céu
caleidoscópio meu
quando chegar ao teu céu caleidoscópico, quero lá enublar-me
e no sudário que aqui ficar, imporás nele o meu nome
e do nome que escreverás sairá o rosto das minhas nuvens crescidas
mas estarei bem
Caleidoscópio

no comment

The virgin suicides

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sexta-feira, setembro 07, 2007

De tudo e De nada, ainda em 2005

New Order - Temptation ( The Heaven & Earth Division RX )

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Porque somos tão incrivelmente iguais?

mete medo saber que afinal o mundo inteiro pode ser uma piada.

com um sorriso nos lábios igual ao de 84, ainda espreito para fora e para dentro, sem saber a cor que os meus olhos hão-de tomar

quarta-feira, setembro 05, 2007

music from ryuichi sakamoto



Rain

o combóio não quer parar de passar. e quando passa não pára. e levo os olhos postos nele, como se daqui me fosse para também já não ficar. quem irá nesse combóio movente, que quando passa não pára.
fica agora, combóio. para sentires comigo a chuva, esta mesma, feita da água que não cai.

segunda-feira, setembro 03, 2007

um retrato de mulher



dedicado à minha querida catarina santos,
com um abraço de mulher
à mulher que assim cresce...

quinta-feira, agosto 30, 2007

Tributo a Herbert Marcuse




Herbert Marcuse defendeu, entre tantas outras causas que preocupavam o pensador, que os Estados modernos, ou os Estados do Bem-Estar Social, apetrechados pelos avanços que as tecnologias lhes permitem, são os verdadeiros responsáveis pelos sistemas de dominação. A racionalidade institucional dirigida sobrepõe-se, de forma totalitária, à racionalidade individual, promovendo nos homens a sua própria alienação. A racionalidade tecnológica, para Marcuse, causa um crescente artificialismo, e gera inevitáveis conformismos, negando a liberdade dos homens, negando-lhes a possibilidade de existirem e de pensarem individualmente, e de se manifestarem revolucionariamente. O Estado assim disposto formata os homens tornando-os mecânicos e submissos, porque para alcançar o bem-estar almejado e prometido pelos Estados modernos, o homem terá de aumentar incessantemente a sua produtividade, e de sujeitar-se ao sistema dominante. Os sujeitos que melhor seguirem as instruções e os planos dos Estados que assim governam em prol do bem-estar, e da conveniência e da concertação, serão, conforme à propaganda dos poderes, mais bem sucedidos na vida. Todavia, esses sujeitos estão incapazes de reconhecer as contra-indicações desse sistema de negação do próprio homem. Neste admirável mundo novo de seduções generalistas que acabam por incapacitar a criatividade e a liberdade humanas, aplaca-se e a essência da humanidade, submetida a extensos códigos de dominação que são perfeitamente dirigistas . É neste contexto que Marcuse desenvolve as suas teorias e, sobre os problemas da arte e da estética, assume com a mesma garantia esta lógica de pensamento, procurando o que na arte pode haver de revolucionário...

segunda-feira, agosto 27, 2007

at work



«Tudo o que nos envolve é artificial e, em muitos aspectos, falso.»
Antoni Tàpies, a prática da arte, gradiva, lisboa, 2002, p. 42

terça-feira, agosto 21, 2007

at work

A construção da realidade artística faz-se em dois sentidos inter-actuantes:

a obra de arte oferece-se partindo do mundo, e a obra de arte oferece mundo.

o céu em quase fim de agosto



«The Cat's Eye Nebula: Dying Star Creates Fantasy-like Sculpture of Gas and Dust»










Soergamo-nos agora

depois que as poeiras dos tantos sóis nos afagaram os membros então pesados

leves demais

após o fim


para recomeçar

quarta-feira, agosto 01, 2007

Duas palavras de quase fim



Charles Sheeler, Stairsfrombelow

Talvez porque os dias desta semana foram assim tão pesarosos, só me lembro de pensar no estado da alienação em que todos, ou quase todos nos encontramos (porque é ela que une os homens, como escreveu Adorno)... E sinto-me alienada, triste embora, também por isso mesmo. Preferia ser, ou estar, de outra forma.

Parei para pensar no que fui aprendendo ao longo a minha vida; e de alguma que ela já foi, não aprendi nada.

E estou agora sob o vão das minhas escadas, cá escondida no buraco da casa da minha avó, debaixo delas e agachada, que com eles também se foi em poucos dias apenas; e penso que não sai debaixo delas jamais, e choro com ela ao olhar para cima do vão das nossas escadas, a sentir lá no alto o entoar meigo do som das asas deles, que não os consigo ver, daqueles anjos grandes que nos carregam com tanto esforço, porque nós não queremos sair, avó, do canto onde me agachei, quieta, debaixo das tuas escadas...

terça-feira, julho 31, 2007

segunda-feira, julho 30, 2007

terça-feira, julho 24, 2007

para re-ouvir tantas vezes


Young Marble Giants, Colossal Youth, domino

... Lembro-me tanto de estar algures num verão tão quente como não há,
durante os primeiríssimos anos da década de oitenta, que era a minha
... e eu era então pequenina e girava com tantos discos emprestados que gravava para mim, e os fui guardando.
... até ontem que reouvi estes sons e esta voz que me tão bem lembro
e fiquei presa ao tempo;
o tempo dos longos anos oitenta que também são meus...
colossal youth,
no tempo em que tudo sentia sem tempo, porque era meu, e porque então era
colossal,
como eu julgava ser a minha juventude...

segunda-feira, julho 16, 2007

... a sala de aula vazia...

Porque as tarefas foram cumpridas…

Os exames da primeira época foram feitos e as notas foram lançadas e veio o Verão, cheirando a pausas, ou ao tempo em que a preguiça faz sentido (li isto ontem no Público, mas não me recordo da fonte e o jornal foi já reciclado…). Chegamos enfim ao tempo das suspensões, que também é de reflexões, porque o ano não acabou na verdadeira acepção, estimando-se ainda em mais dois exames antes do termo, para os que ainda não acabaram.

Desta experiência com os alunos, no Blog, ficou uma sensação algo estranha, porque de facto, este não é o lugar mais acenado para outras indicações, porque este espaço apela a outros sentidos, para além dos nossos sentidos e das nossas relações de aluno e professor.

Este não foi um lugar de diálogos, mas de monólogos entrecruzados com as suas pausas para lazeres e outros imaginários, sempre à luz do que entendi como um espaço de trocas. No ano lectivo que se seguirá partindo de Setembro, deixo de indicar o Socialarte como um sítio que pode consultar-se, porque o formato deste local, a manter-se, alterar-se-á. As ligações do Socialarte com a Universidade Aberta terminarão em breve, e este caminho far-se-á mais solitário e mais ameno, se entender dar-lhe continuidade.

[A experiência aqui vivida transfere-se para outro sítio, no Moodle, em página apropriada para os efeitos e, também por isso, parece que estou a tornar esta entrada como uma elegia à já defunta (embora ainda não me sinta assim moribunda)].

Encerro as portas também para me pensar, e para pensar no arranque do ano lectivo que vem, cheio de novidades e de coisas novas para serem lidas e, antes disso, ainda as devo escrever… Resolverei as três unidades curriculares do 1.º Ciclo na certa medida de Bolonha, espero, se a imaginação e o saber mo permitirem e se a saúde me arranjar espaço, no tempo que ainda tenho, para as resolver com dignidade. Imaginarei ainda duas unidades para o Mestrado em Estudos do Património, que me trará efeitos de luz, certamente. Este é um caminho duro mas muito aliciante… E porque assim é, o socialarte mudar-se-á, por certo, noutra coisa qualquer ou noutro encontro fortuito que os acasos gostam de construir.

No canto da minha sala de aula vazia tento reencontrar-me.
E se me encontrar, na ânsia de encher outra sala, com outras coisas, far-me-ei anunciar…

Obrigada aos que me leram, e aos que me foram dando incentivos para continuar, e boas férias, para quem as pode gozar. Estou nos sítios do costume, para quem quiser continuar a comunicar, porque da fala e da escrita e das trocas não me saciarei … jamais!

Duas palavras de quase fim



Willy Ronis
Avenue Simon Bolivar, 1950
(Gelatin Silver Print)

sexta-feira, julho 06, 2007

Music and words



Laurie Anderson, O Superman, e já lhe perdi a data...

terça-feira, julho 03, 2007

terça-feira, junho 12, 2007

Porque temos medo da vida


Julia Jackson, 1864


Porque já a vivemos noutro lugar, ou noutro tempo,
e porque não nos esquecemos de como ela foi

segunda-feira, junho 11, 2007

o valor da arte enquanto facto social

Bibliografia:

ADORNO, Theodor W., Teoria Estética, Col. Arte & Comunicação, Ed. 70, Lisboa, 1982;

ANTAL, Frederick, El mundo florentino y su ambiente social. La república burguesa anterior a Cosme de Médicis: siglo XIV-XV, versão espanhola de Juan Antonio Gaya Nuño, Alianza Forma Editorial, Madrid, 1989;

ARGAN, Giulio Carlo, Arte e Crítica de Arte, Col. Teoria da Arte, Ed. Estampa, Lisboa, 1988;

—, Guia de História da Arte, Ed. Estampa, Lisboa, 1994;

FORMAGGIO, Dino, Arte, Col. Dimensões, Ed. Presença, Lisboa, 1973;

FRANCASTEL, Pierre, Pintura e Sociedade, Martins Fontes, São Paulo, 1990;

FREEDBERG, David, El poder de las imágenes, estudios sobre la historia y la teoría de la respuesta, trad. Purificación Jiménez e Jerónima Bonafé, Ed. Cátedra, Madrid, 1992;

GOMBRICH, E. H., Arte e Ilusão, Ed. Debate, Madrid, 1997;

HAAR, Michel, Heidegger e a essência do Homem, Col. Pensamento Filosófico, Instituo Piaget, 1997;

HADJINICOLAOU, Nicos, História da Arte e os Movimentos Sociais, Col. Arte & Comunicação, Edições 70, Lisboa;

HAUSER, Arnold, Sociologia del Arte, Guadarrama, Madrid, 1973;

HEIDEGGER, Martin, A origem da obra de Arte, Biblioteca de Filosofia Contemporânea, Edições 70, 1989;

HOLANDA, Francisco de, Da Pintura Antiga, com introdução e notas de José da Felicidade Alves, Livros Horizonte, Lisboa, 1984;

MARCUSE, Herbert, A Dimensão Estética, Edições 70, Lisboa, 1981;

ORTEGA Y GASSET, José, A desumanização da Arte, Cortez Editora, São Paulo, 1991;

SHILS, Edward, Centro e Periferia, Col. Memória e Sociedade, Difel, Lisboa, 1992.

o valor da arte enquanto facto social V

O valor da obra de arte tem vindo constantemente a amotinar-se e a dar lugar a alternativos caminhos de abertura ao mundo. À medida que as civilizações se complexificam, também a arte, que é sucedânea desta evolução, conhece novas realizações mas nunca novas intencionalidades, a não ser que a ruptura da humanidade leve ao esgotamento da noção de obra de arte.

Alteram-se as técnicas, o uso dos materiais, os feitios, os gostos de época, o garante de afirmação que etiqueta o fenómeno como artístico ou não artístico, mas nunca consegue fugir-se aos motivos últimos que levaram à concepção. Os processos formais ofuscam-se quando a obra possui a garantia de efeito que lhe oferece fortuna; a planimetria do gosto é secundária, quando o tempo comprova a imortalidade do fenómeno; o feitio obedece a um estabelecimento mais elevado que é o conteúdo expresso e expressivo da obra, e estes requisitos variáveis conseguem por vezes elevar, no patamar do critério e do juízo, as obras que foram tidas, durante séculos, como menores e decadentes.

Se a obra de arte é uma materialização ideológica, é-o também porque consegue opor-se à sociedade existente, como argumentou Marcuse que garantiu conseguir-se a autonomia da arte quando ela incarna um preceito categórico: “as coisas têm de mudar” .

A obra de arte, na sua relação factual com a sociedade, estima-se de vários modos que são, por vezes, altamente dissonantes, dependendo, obviamente, do lugar histórico que ocupam. Não obstante este constante desalinho que é fruto das várias etapas da evolução humana, importa captar o valor absoluto do facto artístico para que consigamos estabelecer um caminho de contacto teórico. Nesta contextura, retomemos a fórmula já referida quando se disse ser a arte uma forma de domínio do real exterior e interior do homem.

O facto artístico possui um valor social de superação e de crítica, ou de alinhamento e comunhão, dependendo, obviamente, do grau de tradicionalismo e modernidade do fenómeno, dependendo do ambiente social para (e pelo) o qual foi concebido e pelo qual irá ser apreciado, fruído e digerido. A função do artista é recriar o mundo, mas com base não no mundo celestial que já se concluiu ser inimitável, mas aceitando as leis internas que regem este lugar vivente. A função do artista é também a de recriar as emoções sentidas pelo homem no contacto com a mundanidade, é reinventar a vida na matéria que suporta a arte... Ele deve comprometer-se, e compromete-se com a agência terratenente e é neste mundo de laboro que ele se maneja e que se empenha.

Se durante a Idade Média se concebiam obras para agradar a Deus e para oferecê-lo ao conhecimento; se os deuses, os anjos e os santos foram envestidos com um rosto para se aproximarem do entendimento humano, hoje constrói-se essencialmente para o Homem e para a sociedade dos homens. O habitáculo de Deus passou a ser o indivíduo, ao invés da catedral. Neste sentido, a arte empenha-se num crescendo constante de consciencialização social, ganhando cada vez mais peso e comprometendo-se de outra forma, mas sempre assumida na sua relação com a estrutura social da humanidade.

Se durante séculos grande parte das obras perderam de si o tempo, se a maior parte dos artistas replicava valores absolutos e abstractos inabaláveis — revisite-se o exemplo da plastificação românica à luz da nova historiografia artística — como a fé nos santos e santas, nos actos piedosos ou, genericamente, na sacralidade celestial, lentamente foram abertas as portas ao comprometimento com a ilustração de época, nos seus sistemas económicos, sociais e ideológicos.

O papel do historiador e do crítico da arte tem de envolver-se com este arrojo de intenções multiformes. Tem de fazer romper do invólucro das formas estéticas, ou inestéticas, o sortilégio, a explanação, o presságio, o significado último e total e o empenhamento em missão de escrita vinculada.

Se na actualidade assistimos a um acelerado rompimento dos indivíduos com as formas de arte, no cumprimento de um sórdido prognóstico do fim da arte e da nascença da forma fútil, vácua e sem ideologia ou valores, não estamos a dar crédito à fórmula da Estética hegeleriana, de um inevitável renascimento, porque a arte pode nascer do nada, mas não deve caminhar no sentido da sua nulificação. O constante afastamento das ideologias, das crenças racionais ou metafísicas — que se exploram hoje por alternativas incertas —, o alheamento provocado pela dissimulação da liberdade em libertinagem, o excesso de tudo e de nada, a aceleração da ruptura das economias, a vanidade e o delírio provocam, na actualidade, a decadência da arte. Trata-se de uma decadência bilateral ou comutativa, porque também — e mesmo que não queiramos cair na tentação esteticista — o «mau gosto artístico e estético arrasta inexoravelmente o mau gosto moral e político, nos quais normalmente tem origem a espiral» .

O fim da história materializou-se, afinal, no derrube dos sistemas filosóficos, no acanhamento de uma religião verdadeira e, genericamente, na ocultação do Ser, numa perspectiva autenticamente ontológica. Este caminho atraiçoou a arte que, de per si, deveria consubstanciar e veicular ideias. A sua ausência, acarretou o alheamento do conteúdo e a exaltação da forma.

O retrato dos nossos tempos perturbados é a imagem da nossa fuga sistemática. O apagamento da arte enquanto entidade absoluta é o reflexo de uma sociedade esboroada que se esgotou.

terça-feira, junho 05, 2007

derivação de um pensamento

A pintura serve, não para veneração, mas somente para educar as mentes dos ignorantes, para edificação dos incultos, e para informar o povo sem instrução, que a contempla.

derivação de um pensamento de Gregório Magno, Doutor da Igreja (sécs. VI-VII d.C.)

quinta-feira, maio 31, 2007

music and words


(Nha Trang, Vietnam, #1, 1998)



Leaving Today

«So suddenly awake.
No light from yonder window breaks, no crowing cock,
Just my old clock, please make it stop.
I try to wrestle free,
But like the dew she clings to me,
“No way Jose, you don’t get away that easily”.

Leaving today, leaving today, leaving today.

“Release me let me go.
I love you more that you could know.
All I can do is promise to come home to you”.
I tip-toe from the bed
And put my head around the nursery door to say good-bye.
It breaks my heart every single time.

I’m leaving today, I’m leaving today, I’m leaving today.

I would stay if you asked me, so for God’s sake don’t ask me to stay.
My taxi has arrived. Good-bye sweet simple life, good-bye.

The city’s waking up.
Dreams fizzle out like raindrops racing down the glass.
They blur the street-lamps as we pass.»

The Divine Comedy. Absent Friends. 2004

terça-feira, maio 29, 2007

o valor da arte enquanto facto social IV

O que é hoje uma obra de arte? Despida da sua função mística, que caminhos alcançará? Qual é o papel do artista no mundo? É a obra de arte uma interpretação da natureza ou é o homem um intérprete das obras de arte que não se dizem? Qual é o valor do ícone e do objecto? Qual é o valor da arte enquanto facto social? Que compromisso existe ainda entre a expressão e a afectação ideológica?

Indagámos já alguns dos efeitos produzidos nos seres pelas reproduções do real convertido em obra, ou em imagem, mas resta-nos abordar que garantias merecem estes fenómenos do lado de lá da execução.

Como é sabido, só há relativamente pouco tempo a obra de arte ganhou viva autonomia enquanto acto de pura criação individual. Durante séculos, ela foi sempre a filha legítima da encomenda, um braço longo de indivíduos ou, mais consertadamente, de grupos sociais. O comprometimento com o artista era puramente prático, porque o encomendante não possuía a mestria, ou o ingénio de execução artística. Este ambiente da obra agrilhoada à encomenda não pode esquecer-se, sob pena do olvido da sua faculdade de extirpação de uma vontade colectiva.

Como comprovou Frederik Antal, a pintura florentina dos séculos XIV e XV ficou a dever-se não ao talento individual e desapegado dos pintores, mas antes ao intuito da encomenda levada a cabo pelas classes económicas e sociais dominantes: a alta burguesia comercial de Florença. A encomenda ditou os temas, os modos, os desenvolvimentos e até as cores das representações . As obras produzidas pelos grandes artistas foram (e, em certa medida, ainda são), antes de tudo o mais, os produtos estéticos e formais de uma ideologia de classe, a classe que domina o panorama político, económico e social do seu tempo, aquela que pode marcar a conjuntura porque é detentora dos meios de produção, aquela que tem de firmar-se com legitimidade de exercício, aquela que necessita de aliar ao poder uma certa forma de produção cultural. Neste contexto, a obra de arte surge como uma materialização de poder, como uma materialização ideológica ou, nas palavras de Hadjinicolaou, como uma ideologia imagética definida «não [como] um conjunto de representações matafóricas, mas, em sentido estrito, [como] uma combinação específica de elementos formais e temáticos da imagem através da qual os homens exprimem a maneira como vivem as suas relações com as suas condições de existência, combinação que constitui uma das formas particulares da ideologia global de uma classe.» . Neste e noutros sentidos, as fórmulas da arte pela arte perdem garantia de propósito. A arte é uma expressão das condições de existência ora crítica e denunciadora, ora de superação. Expressão de um grupo social, ou para um grupo social independentemente do seu número, porque pode tratar-se de uma arte de massas, para as massas ou de rebelião de massas...

É este empenho social que não pode apear-se da categoria da obra, seja artística ou anti-artística. Qualquer que seja o túmulo esculpido, ou o retrato de um sujeito, ou a plasticização de uma imagem sagrada, ou o levantamento de uma catedral, de um palácio, de um convento, ou a edificação de um bairro, ou a composição de um requiem; seja qual for a peça, mesmo a mais efémera explosão de inflamada pirotecnia, todas estas manifestações do engenho e do intelecto humano carregam, por detrás de si, um ónus de elocução indesmentível: o comprometimento social.

Durante séculos, foi o próprio encomendante quem estabeleceu a plasticização da sua efígie no túmulo pétreo, para que venha a subsistir na memória dos homens; o retrato do benemérito foi o próprio quem assim o quis. As imagens sagradas encomendadas pelos cabidos, pelas paróquias, ou outras fábricas, foram ditadas para que, na sua maioria, se pudessem ler. Surgiram, desde a longa Idade Média, no interior de retábulos, de arcarias resguardantes, recobrindo muros transmutados em livro sagrado e a rigorosos critérios de ensinança social: as imagens devem ser exemplificações colocadas diante das nossas mentes para refinar e orientar os sentidos, por forma a que as coisas imperceptíveis nos surjam ao intelecto como perceptíveis (S. Boaventura). As obras de arte sacra insinuaram-se, desde sempre, porque no homem há uma necessidade vital de preenchimento e de incorporação. Elas devem suprir a carência provocada pela invisibilidade de Deus (ou dos deuses) e de todos os seus mistérios.

Durante séculos a fio e até à contemporaneidade , o artista foi limitado a cumprir a missão de plasticização para que, através das suas obras, a sociedade pudesse ler as mensagens escritas pela tinta invisível do encomendante, ou da classe social que ele incorporava.

A sociedade sempre foi ditando, directa ou indirectamente, o fenómeno artístico e imagético e age segundo vários modos operativos, mas com uma unicidade de vontade explícita: porque se compromete, enquanto grupo de indivíduos racionais, com a perenização, com a escatologia, com o poder, com a memória, com o domínio, com o conhecimento, com a encenação, com a tautologia, com as ideologias, com a cultura, etc..

Resta ainda questionarmo-nos acerca das obras que não conheceram outro ditame que não tenha sido a vontade de criação individual. Ao longo da história da produção de imagens, também existiram outros artistas que laboraram individualmente, ou seja, sem qualquer relação com um querer de encomenda prévia. Essas obras possuem ou não alguma relação com o tecido social? Que disposições cumprirão, para além da extirpação da imaginação criadora? O que valeu a essa plêiade de homens, o privilégio da autonomia?

A obra de arte é uma libertação da Ideia, como entidade intelectual que dá conteúdo à forma. É no fulcro dessa Ideia que devem procurar-se as intenções do artista e/ou do encomendante, para cada caso concreto. Qualquer que seja a obra de arte plástica, mesmo aquela que assume texturas abstractas de não-figuração, possui uma finalidade que deve entender-se como uma afinação ou, por outro lado, com um rompimento crítico e revolucionário com a realidade.
De entre as múltiplas categorias de operatividade, devemos entender o artista como um homem que trabalha, como um membro activo da, e na sociedade, como um sujeito que “está sujeito”, como mais um componente neste elenco da vida e do quotidiano da humanidade. Constituindo um elemento da e na sociedade, o artista revive-se nela ou rebela-se contra ela, ou aliena-se, numa disposição suicidária relativamente ao todo do qual faz, intrinsecamente, parte. Assim é a sua exportação plasticizada. O empenhamento do artista revive-se no próprio trabalho que pratica num contexto que é sempre político e social, já que se comprovou que o seu ofício é tão doloroso como o de qualquer outra actividade laboral — apesar de mais libertadora do que outros destinos de rotina como o trabalho fabril. A produção (artística) de imagens apoia-se na consubstanciação, ou no distanciamento crítico relativamente ao todo de suporte e alicerce multiforme que é a mundanidade.

A sociedade também precisa do artista liberto da encomenda do passado, precisa do artista de vanguarda, da arte nova e dialéctica, para sustentar-se enquanto sociedade mutante. O artista sem os grilhões atávicos da encomenda estrita não se descomprometeu, mas envolveu-se cada vez mais. As obras pessoais e personalizadas funcionam como demonstrações de uma intelectualidade única e crítica que não pode desaproveitar-se, sob pena de uma alienação social agonizante. Por forma a que uma sociedade, entendida no cômputo geral das suas possibilidades estruturais, possa evoluir, ela tem de entender-se e de criticar-se de uma forma ampla e revivificante. O papel da arte, neste contexto, é tão inevitável quanto fundamental, e a busca da verdade na arte consubstancia-se neste entorno, como a desocultação do ser (no mundo) criativo.

sexta-feira, maio 25, 2007

o valor da arte enquanto facto social III

Durante um comprido período da História, o contacto com obras de arte produzia efeitos estonteantes. Desde a mais terna Idade Média que, na arte sacra e religiosa, as representações piedosas acalentavam a alma do leitor que assim tendia a comportar-se convenientemente, porque mesmo os iletrados colhiam o ensinamento bíblico através das mais diversas formas de arte plástica: «É pintura viva escritura e doutrina dos indoutos, como diz Decreto [de Graciano], mas aos contemplativos e letrados é acrescentamento de saber.». Se o retrato visível correspondia ao de uma mulher virtuosa ou santa, os leitores eram levados a catapultar-se naquela casta dimensão. Durante toda a época moderna, era corrente estimular-se a existência de quadros ou de outras imagens moralizantes e educativas numa casa habitada por crianças. Por outro lado, o macabro e o diabólico exerceram sempre outro género de motivações. Veja-se a capacidade de inquietar os homens que possuíam os capitéis e tímpanos das igrejas e mosteiros medievais, plenos de efeitos infernais, e alertando os homens para a emergência da casa de Deus, protegida e limpa do paganismo, do pecado, e distantes da mundanidade aterradora e impura.

Na actualidade, crê-se que o contacto permanente com as obras de arte, sejam elas plásticas, musicais, teatrais, ou outras, alimenta o espírito dos seres humanos, dignificando-o, elevando-o na sensibilidade e na cultura. Estes efeitos edificantes e taumaturgos das obras de arte cristalizaram-se na história, como temos vindo sempre a assistir.

De onde provém esta aura de fábula mágica contida nas obras de arte? Tratar-se-á de uma magia veiculada pelo poder da representação e dependente da maestria e virtuosismo do artista ou executor? Pode entender-se como o fruto de uma estranha empatia existente entre o sujeito e o receptor que, por existir, capacita a projecção na obra ou, por outro lado, estará o nosso imaginário programado para envolver-se garantidamente com estas manifestações da criatividade e da habilidade humanas? Advirá esta atracção pela arte do facto de associar-se, muitas vezes, ao prazer estético? É a arte o sonho visível, materializado, mundo às avessas, sem espaço nem tempo como aquele em que se situa o comum dos mortais? Somos ou não somos todos artistas?

A relação mantida com as obras de arte plasma-se ainda hoje na incorporação e na libertação. Na incorporação do visível e do invisível, do mundo e da Ideia que antecede a criação do Outro mundo imaginado, que não possui realidade enquanto tal mas que subsiste para além dela. Como um efeito fisiológico, de alimentação espiritual, os homens acreditam que, através dos sentidos, como uma entrada da, e para a alma, vão filiar-se aqueles factos, ou artefactos. A liberdade da arte é a sua provocação última, é a extirpação do pecado e dos vícios, dos desejos, da ansiedade e é a liberdade de dizer-se abertamente o que não se quer dizer. É a libertação do cosmos: «Portanto, a realidade não é o que está diante de nós, mas o que está por detrás, no espaço virtual do espelho.». É a liberdade do trabalho como assunção de felicidade e de acabamento da obra da natureza, ou de Deus.