terça-feira, maio 22, 2007

Jacopo Tintorreto II



Jacopo Tintoretto (1518-1594)

No Museu do Prado a entrada, a 18 de Maio, no dia internacional dos Museus, não era paga e nem havia grandes filas para entrar-se na ala de exposições dedicada a Tintoretto, a quem Vasari classificou como «el piu terribile cervello che abbia avuto mai la pittura», ou ainda como extravagante, caprichoso, rápido e resolvido, e o cérebro mais extraordinário que jamais havia tido a pintura.
O primeiro lanço de obras não é o mais significativo, passando o seu primeiro auto-retrato de belo e jovem homem com um olhar doce e enorme, com miradas de longo alcance e a Sagrada Família com São João Baptista, Zacarias, São Francisco, Isabel e Santa Catarina (1540), quadro largo mas com um óleo ainda pouco fluído.
Surge depois Jesus entre os Doutores (1542), uma das tantas obras inacabadas do autor, com nítidas influências de Rafael na disposição das imagens pintadas com soltura. Nesta pintura, Tintoretto demonstra-se já como um artista desmedido, amante das formas dinâmicas, transformadas pela acção e desenhadas em plena actividade. No primeiro plano saltam, imensas e prenhes, as texturas de gente movida e larga, e lá no fundo do quadro feito de perspectivas complexas, está Jesus, dissimulado entre as personagens que povoam a cena, esboçadas mas com justa vida.
Data de 1545 o fabuloso óleo de Vénus, Vulcano e Marte, retrato do flagrante mítico mas concebido de forma irónica, já que na vez de tapar os corpos do par adúltero, o pintor decide colocar Marte escondido sob a mesa do quarto na altura em que Vulcano tenta encontrá-lo, em vão, sob os panos transparentes que cobrem a figura desnuda e sensual da mulher traidora. Entretanto, Marte surge debaixo da mesa ao pé da cena e é descoberto pelo cão que lhe ladra enquanto ele o tenta calar. No desenrolar da situação em auge de tragédia cómica, está a figura de Cupido dormente, paralelo e sem acção no pano de cena.
No final dos anos quarenta, Tintoretto desenhou e pintou uma das suas grandes obras-primas: o Lava-pés. Trata-se de um quadro que, por mais tempo que nos detenhamos a contemplar, não nos surge uma nem pequena sensação de cansaço. O pintor destruiu o espaço para recompô-lo de forma lúdica e idealizada, miscigenando a ilusão com a realidade palpável do quotidiano feito de gente viva e em plena acção mas em silêncios. É um quadro sublime e cheio de referências, nas alusões aos tratados de arquitectura vigentes e nas alusões simbólicas internas. Esta obra possui uma textura invulgar, feita de luz e de escorços vigorosos, feita de efeitos perspécticos concebidos com rara mestria. O quadro não foi concebido para ver-se de frente, mas de lado, e, de cada um dos lados, o nosso olhar alcança momentos de tridimensionalidade assustadores, como se as figuras saltassem na cor para fora do espaço plano, provocando uma ilusão do olhar verdadeiramente arrepiante. E a par da ilusão está a realidade da carne pintada sobre os ossos das figuras terríveis, pitada sob as roupas nas suas diversas combinatórias de panos e de brilhos. O cenário é o de um teatro de vida melancólica, em que Cristo, na sua humildade de homem são, lava os pés a Pedro com os braços nus e com a maior naturalidade que é possível…
São Jorge, São Luís e a Princesa (c. 1552) é outro quadro arrebatador. A princesa está reclinada sob o Dragão defunto e, de colo amplo, ergue o olhar titubeante na direcção do seu protector arraigado em trajes de guerra luzentes. Trata-se de uma dupla romântica e musical. Mas a figura arrebatada da Princesa reflecte-se, entretanto, na armadura de São Jorge, fazendo com que o seu olhar de mulher narcísica se fixe na roupa do guerreiro quebrando a comunicação que devia estabelecer-se entre ambos. São Luís acompanha a cena mas, ainda assim, ele está ausente do desenrolar dos acontecimentos, repousando o seu olhar de rapaz doce na arma quebrada de São Jorge, quedada em escorço aos seus pés desnudos.
Susana e os Velhos mereceu um restauro completo mesmo antes de integrar a exposição madrilena, e ainda bem, porque o corpo rotundo da jovem nua redobra agora em vida e em luz, atingindo lugares de perfeita sintonia com o mundo supra-lunar. É mais um quadro de fascínios, onde a carne ganha fortuna, também no contraste vivo com o mundo terreal feito de elementos vegetais. É um cálice de luz que aqui se oferece sem misericórdia pelo olhar distraído do receptor que, atraído pela luz das carnes soltas da mulher, assim se enamora das suas formas, sentido os cheiros de mundo e de flores exalando das entranhas das tintas finas e transparentes que o enformam. Nem é paz nem exaltação que se sente neste contacto com o quadro, mas a suavidade de um suspiro quieto de paixão doce, e uma breve arrebatação dos sentidos mais adormecidos.
Daqui me fixo numa das tantas últimas ceias pintadas pelo autor. Esta que se expõe em Madrid, e de que agora falo, é a de 1563-1564 (Igreja de São Trovaso; Veneza), escolhida não ao acaso, mas por motivos presos com a minha sensibilidade pessoal. É outro quadro de encontros, feito como se de uma cena doméstica se tratasse. Nesta ceia, Judas não veste de amarelo, mas usa umas calças de um vermelho tão forte e impregnante que avassala o nosso olhar canalizado pelo seu aro de cor. Cristo distende-se na perspectiva torcida do quadro, numa pose relaxada e paternal, pousando a mão sobre as costas de João no momento em que ele soube que o seu Mestre fora traído. Ao fundo da cena estão fixadas duas figuras imaginárias, como Tintoretto tanto gostava de pintar, feitas de finas camadas de uma tinta diáfana e dissolvida, como almas do outro mundo tocando este. A um canto da cena está um menino da época, calado e quieto na sua timidez, e como que sabendo que o seu lugar não era aquele mas que, como por descuido, o pintor foi integrar, licenciosamente, porque ali passara sem querer.
Na Origem da Via Láctea (c. 1577-1579), o pintor foi exuberante e faustoso no acabado e na escolha das tintas e dos escorços das suas figuras voantes e sem roupa. O Rapto de Helena merece encómios irrepetídos, (também pela ideia da comissão da exposição que integrou uma ala dedicada ao processo criativo do pintor, mostrando como do nada nascia o tudo, e como do branco da tela foi surgindo esta pintura assombrosa). É um quadro verdadeiramente místico, que congrega o finito das formas com o non finito de outros lugares, em outras formas. E do traço largo e firme e presto do Tintoretto maduro nasce esta obra de arte sem tempo e sem espaço, mas com vida própria de arte com ganas de nunca perecer. É de movimento e de som que se fizeram estas formas gigantes de homens e de mulher cálida e sensual, de olhares vagos, aquosos e melancólicos, no seu destino trágico.
E o nervo do pintor rege o Martírio de São Lourenço, em pleno auge de cor, de luz e sombra terríveis, porque macabra cena não podia pintar-se sem o dramatismo amargo que rege as mortes tremendas.
Saltando tantos outros quadros magníficos, termino esta curta viagem no outro rosto do pintor, já com tantos anos de vida cumpridos, de fadigas e de trabalhos rápidos, no rosto deste homem mistério que não viveu tragédias, para além das que imaginou com magnífica e larga percepção extra-mundanal.
Ficou, desta exposição madrilena, um amargo de boca por não saber pintar, por não conseguir imaginar, eu mesma, o negro fazendo saltar a luz. Por não conseguir fazer sair nunca, das minhas mãos vazias, uma réstia de cor pregnante. Mas vim mais sólida, robustecida, porque o contacto com o belo nos deixa assim a flutuar sobre o mundo, nos deixa assim esta brecha para o outro mundo, o dos outros homens que, porque vieram, nos fazem sentir como gente que vale a pena.

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