quinta-feira, novembro 09, 2006

Ars Gratia Artis





Ainda estou a corrigir os exames de Sociologia da Arte e revelo existirem grandes dificuldades em lidar com a teoria conhecida como arte pela arte. Depois de ter já explicado inúmeras vezes o que quer esta ideia significar, uso este diário aberto para expor, muito rapidamente, e por forma a chegar a todos, que a Arte pela Arte não é mais do que a Arte feita com o único objectivo de agradar (Hume) aos sentidos, ou de provocar prazer, ou deleite estético. No contexto da nossa disciplina, o estudante nem sequer necessita de ir mais longe do que isto, não precisa de saber em que contexto cultural surgiu esta teoria, ou como ela veio a lume e se desenvolveu, nem necessita de grandes conhecimentos da Estética para situar-se no território do entendimento da arte como uma produção inútil, descomprometida, isenta de diálogos, ou desinteressada. Isto é: a Arte pela Arte, na medida do seu afastamento relativamente aos propósitos (e precisamente aos propósitos) que uma sociologia da arte advoga.

O pintor que pinta exclusivamente pelo prazer de o fazer, pelo apego às formas, ou o escritor que não procura nada com a sua escrita, deleitando-se com o paladar das suas palavras, com a métrica dos seus poemas, são artistas que laboram neste âmbito, e ao serviço de propósitos puramente recreativos, ou esteticistas.

É evidente que uma Arte pela Arte, ou uma arte autónoma, no sentido da sua distância efectiva relativamente a quaisquer propósitos ou finalidades tais como a educação, a perfeição moral ou a utilidade (funcional ou social) foi largamente defendida e praticada por filósofos e artistas românticos, entendendo que qualquer funcionalidade, ou utilitarismo da arte a destruiria (cf. pensamento de Hegel, ou do poeta Pierre Jules Théophile Gautier, ou de Oscar Wilde que defendeu a imoralidade e a inutilidade da arte, entre tantos outros).

Todavia, a ideia de que a arte não é desprovida de objectivos, ou de funções, veio paulatinamente opor-se ao constructo defendido por Gautier (e outros). De facto, o realismo e, depois, o naturalismo, reconduziram o sentido da arte, centrada agora, com outro rigor, na planimetria da realidade, da vida e dos Homens, mesmo na sua mais áspera condição humana.

Importa, para o nosso caso específico, saber que Herbert Marcuse se serviu da teoria da arte pela arte como mais um argumento no sentido da sua superação relativamente à ortodoxia marxista. Para ele, até a Arte pela Arte possui uma função, na medida em que o alheamento relacional do artista significa rebelião. Ou seja, e muito rapidamente, se o artista labora independentemente da realidade é porque está a criticá-la, a rebelar-se contra ela, ou a olvidá-la por menosprezo, por não concordar com ela. A prática de uma arte pela arte é, para Marcuse, um facto que deve ler-se como a prática da crítica, do reparo e da reprimenda social. Trata-se, então, de uma espécie de teoria que funcionaliza o constructo decadentista que defendia a inutilidade da arte….

terça-feira, novembro 07, 2006

Notas sobre um exame, muito rapidamente

Estou, neste preciso momento, a corrigir os exames da segunda época da disciplina de Sociologia da Arte (UAb, código 721) e sinto um forte impulso que me leva a escrever sobre determinados assuntos, presentes da prova, numa forma de discurso muito rápida.

O facto é que encontro, na medida da leitura das provas, grandes lacunas de conhecimento, especialmente no âmbito do manuseamento de alguns conceitos-base da disciplina, fenómeno que conduz ao surgimento de grandes conflitos teóricos que, no cúmulo, transportam erros mais persistentes. Às vezes são mesmo os pequenos enganos, aqueles que pensamos serem de somenos, que nos levam a adulterar as formas de pensamento que, em progressão, geram infinitos erros.

Na resposta à primeira pergunta da segunda parte do exercício, notei ser recorrente a confusão entre:
autonomia da arte e autonomia do artista
liberdade artística e liberalidade do artista

Marcuse afiançou, justamente, que a arte é, ou deve ser, perfeitamente autónoma perante as relações sociais existentes na medida em que a arte também vale por si, como um sistema imbuído de valores estéticos que, para a grande maioria dos marxistas ortodoxos, não eram valorizados. Escreveu o autor que a sua crítica à ortodoxia marxista se baseia, precisamente, nos postulados aos quais ela mesma se vincula, ou seja, por encarar a arte no contexto estrito das relações sociais prevalecentes, atribuindo assim à arte uma função política e um potencial político. Marcuse vê o potencial político da arte na própria arte, na forma estética em si e, para além disso, Marcuse defende que é pela forma estética da arte que ela surge absolutamente autónoma perante as relações sociais existentes.

O que faz com que um objecto (leia-se também um acontecimento, ou um conjunto de sons, de movimentos, ou uma rua, ou outro qualquer edifício construído num determinado sistema cultural) possa considerar-se como um objecto artístico? Esta questão, que é recorrente, adiantou o pensamento deste nosso autor no sentido de se ultrapassar a norma da identificação do objecto-arte com o discurso ortodoxo que o fazia prever como o representante dos verdadeiros interesses da burguesia. As obras de arte, para Marcuse, são entidades com vida própria, para além das suas ligações com a territorialidade política, económica, cultural e social. A arte também vale por si, transcendendo a praxis, porque ela é corpo singular que pulsa, que grita, que se aflige, que sangra, ou que inebria... ela é, por si só, um discurso…

Trata-se então da declaração de uma determinada autonomia da arte, e num determinado contexto expresso por Marcuse, porque há outros (inúmeros), que não possuem quaisquer ligações com a ideia da autonomia do artista. Esta autonomia do artista, vista à luz, por exemplo, da sua emancipação relativamente aos grilhões corporativos, ou da estrutura fechada da encomenda medieval, ou de outros regimes, ou sistemas mais ou menos inibitórios do trabalho criativo puro e simples, não possui quaisquer relações com a autonomia da arte enunciada na questão do exame em causa. Este é outro assunto que está relacionado, correctamente, com a segunda confusão achada nos textos de resposta à pergunta em aferição: a liberdade e a liberalidade artística

Em primeiro lugar, devemos estar conscientes de que no nosso contexto de pensamento, autonomia não quer dizer o mesmo que liberdade, no seu justo sentido de libertação, ou de alforria. Concretamente, dizer-se que o artista medieval era, senso lato, um indivíduo sem liberdade, não está correcto. O artista era, mesmo quando ao serviço de um indivíduo, de uma instituição, ou de uma comunidade, um homem livre (embora sujeito a normas, embora sujeito a punições, embora sujeito a contratos, embora sujeito ao trabalho dentro de determinados sistemas de integração…). O Renascimento não veio, de facto, libertar o artista mas, por outro lado, veio oferecer-lhe uma nova estrutura de pensamento: o artista é um indivíduo liberal. Tratamos, neste nosso contexto de pensamento, de liberalidade e não de liberdade. O artista assume-se, a dada altura da sua história, como um sujeito dotado de capacidades intelectuais (é claro que a capacidade intelectual oferece mais liberdade ao sujeito, mas não é este o caso que queremos tratar no momento…). A assunção da capacidade intelectual do artista é concomitante à verificação do uso das artes liberais no contexto de aprendizagem e de desenvolvimento do trabalho artístico. De facto, o artista fazia (e faz) uso, no seu exercício, das artes liberais, do trívium e do quadrívium, consubstancias da sua própria ciência, ou da sua experiência, destacando-se, também por esse motivo, do cômputo de artistas mecânicos, ou meramente manuais, ou daqueles cujo serviço público não passa pelo trabalho intelectual. A assunção da liberalidade artística é, assim, a separação das aras manuais feita pelos indivíduos que laboram com a invenção