quinta-feira, maio 31, 2007

music and words


(Nha Trang, Vietnam, #1, 1998)



Leaving Today

«So suddenly awake.
No light from yonder window breaks, no crowing cock,
Just my old clock, please make it stop.
I try to wrestle free,
But like the dew she clings to me,
“No way Jose, you don’t get away that easily”.

Leaving today, leaving today, leaving today.

“Release me let me go.
I love you more that you could know.
All I can do is promise to come home to you”.
I tip-toe from the bed
And put my head around the nursery door to say good-bye.
It breaks my heart every single time.

I’m leaving today, I’m leaving today, I’m leaving today.

I would stay if you asked me, so for God’s sake don’t ask me to stay.
My taxi has arrived. Good-bye sweet simple life, good-bye.

The city’s waking up.
Dreams fizzle out like raindrops racing down the glass.
They blur the street-lamps as we pass.»

The Divine Comedy. Absent Friends. 2004

terça-feira, maio 29, 2007

o valor da arte enquanto facto social IV

O que é hoje uma obra de arte? Despida da sua função mística, que caminhos alcançará? Qual é o papel do artista no mundo? É a obra de arte uma interpretação da natureza ou é o homem um intérprete das obras de arte que não se dizem? Qual é o valor do ícone e do objecto? Qual é o valor da arte enquanto facto social? Que compromisso existe ainda entre a expressão e a afectação ideológica?

Indagámos já alguns dos efeitos produzidos nos seres pelas reproduções do real convertido em obra, ou em imagem, mas resta-nos abordar que garantias merecem estes fenómenos do lado de lá da execução.

Como é sabido, só há relativamente pouco tempo a obra de arte ganhou viva autonomia enquanto acto de pura criação individual. Durante séculos, ela foi sempre a filha legítima da encomenda, um braço longo de indivíduos ou, mais consertadamente, de grupos sociais. O comprometimento com o artista era puramente prático, porque o encomendante não possuía a mestria, ou o ingénio de execução artística. Este ambiente da obra agrilhoada à encomenda não pode esquecer-se, sob pena do olvido da sua faculdade de extirpação de uma vontade colectiva.

Como comprovou Frederik Antal, a pintura florentina dos séculos XIV e XV ficou a dever-se não ao talento individual e desapegado dos pintores, mas antes ao intuito da encomenda levada a cabo pelas classes económicas e sociais dominantes: a alta burguesia comercial de Florença. A encomenda ditou os temas, os modos, os desenvolvimentos e até as cores das representações . As obras produzidas pelos grandes artistas foram (e, em certa medida, ainda são), antes de tudo o mais, os produtos estéticos e formais de uma ideologia de classe, a classe que domina o panorama político, económico e social do seu tempo, aquela que pode marcar a conjuntura porque é detentora dos meios de produção, aquela que tem de firmar-se com legitimidade de exercício, aquela que necessita de aliar ao poder uma certa forma de produção cultural. Neste contexto, a obra de arte surge como uma materialização de poder, como uma materialização ideológica ou, nas palavras de Hadjinicolaou, como uma ideologia imagética definida «não [como] um conjunto de representações matafóricas, mas, em sentido estrito, [como] uma combinação específica de elementos formais e temáticos da imagem através da qual os homens exprimem a maneira como vivem as suas relações com as suas condições de existência, combinação que constitui uma das formas particulares da ideologia global de uma classe.» . Neste e noutros sentidos, as fórmulas da arte pela arte perdem garantia de propósito. A arte é uma expressão das condições de existência ora crítica e denunciadora, ora de superação. Expressão de um grupo social, ou para um grupo social independentemente do seu número, porque pode tratar-se de uma arte de massas, para as massas ou de rebelião de massas...

É este empenho social que não pode apear-se da categoria da obra, seja artística ou anti-artística. Qualquer que seja o túmulo esculpido, ou o retrato de um sujeito, ou a plasticização de uma imagem sagrada, ou o levantamento de uma catedral, de um palácio, de um convento, ou a edificação de um bairro, ou a composição de um requiem; seja qual for a peça, mesmo a mais efémera explosão de inflamada pirotecnia, todas estas manifestações do engenho e do intelecto humano carregam, por detrás de si, um ónus de elocução indesmentível: o comprometimento social.

Durante séculos, foi o próprio encomendante quem estabeleceu a plasticização da sua efígie no túmulo pétreo, para que venha a subsistir na memória dos homens; o retrato do benemérito foi o próprio quem assim o quis. As imagens sagradas encomendadas pelos cabidos, pelas paróquias, ou outras fábricas, foram ditadas para que, na sua maioria, se pudessem ler. Surgiram, desde a longa Idade Média, no interior de retábulos, de arcarias resguardantes, recobrindo muros transmutados em livro sagrado e a rigorosos critérios de ensinança social: as imagens devem ser exemplificações colocadas diante das nossas mentes para refinar e orientar os sentidos, por forma a que as coisas imperceptíveis nos surjam ao intelecto como perceptíveis (S. Boaventura). As obras de arte sacra insinuaram-se, desde sempre, porque no homem há uma necessidade vital de preenchimento e de incorporação. Elas devem suprir a carência provocada pela invisibilidade de Deus (ou dos deuses) e de todos os seus mistérios.

Durante séculos a fio e até à contemporaneidade , o artista foi limitado a cumprir a missão de plasticização para que, através das suas obras, a sociedade pudesse ler as mensagens escritas pela tinta invisível do encomendante, ou da classe social que ele incorporava.

A sociedade sempre foi ditando, directa ou indirectamente, o fenómeno artístico e imagético e age segundo vários modos operativos, mas com uma unicidade de vontade explícita: porque se compromete, enquanto grupo de indivíduos racionais, com a perenização, com a escatologia, com o poder, com a memória, com o domínio, com o conhecimento, com a encenação, com a tautologia, com as ideologias, com a cultura, etc..

Resta ainda questionarmo-nos acerca das obras que não conheceram outro ditame que não tenha sido a vontade de criação individual. Ao longo da história da produção de imagens, também existiram outros artistas que laboraram individualmente, ou seja, sem qualquer relação com um querer de encomenda prévia. Essas obras possuem ou não alguma relação com o tecido social? Que disposições cumprirão, para além da extirpação da imaginação criadora? O que valeu a essa plêiade de homens, o privilégio da autonomia?

A obra de arte é uma libertação da Ideia, como entidade intelectual que dá conteúdo à forma. É no fulcro dessa Ideia que devem procurar-se as intenções do artista e/ou do encomendante, para cada caso concreto. Qualquer que seja a obra de arte plástica, mesmo aquela que assume texturas abstractas de não-figuração, possui uma finalidade que deve entender-se como uma afinação ou, por outro lado, com um rompimento crítico e revolucionário com a realidade.
De entre as múltiplas categorias de operatividade, devemos entender o artista como um homem que trabalha, como um membro activo da, e na sociedade, como um sujeito que “está sujeito”, como mais um componente neste elenco da vida e do quotidiano da humanidade. Constituindo um elemento da e na sociedade, o artista revive-se nela ou rebela-se contra ela, ou aliena-se, numa disposição suicidária relativamente ao todo do qual faz, intrinsecamente, parte. Assim é a sua exportação plasticizada. O empenhamento do artista revive-se no próprio trabalho que pratica num contexto que é sempre político e social, já que se comprovou que o seu ofício é tão doloroso como o de qualquer outra actividade laboral — apesar de mais libertadora do que outros destinos de rotina como o trabalho fabril. A produção (artística) de imagens apoia-se na consubstanciação, ou no distanciamento crítico relativamente ao todo de suporte e alicerce multiforme que é a mundanidade.

A sociedade também precisa do artista liberto da encomenda do passado, precisa do artista de vanguarda, da arte nova e dialéctica, para sustentar-se enquanto sociedade mutante. O artista sem os grilhões atávicos da encomenda estrita não se descomprometeu, mas envolveu-se cada vez mais. As obras pessoais e personalizadas funcionam como demonstrações de uma intelectualidade única e crítica que não pode desaproveitar-se, sob pena de uma alienação social agonizante. Por forma a que uma sociedade, entendida no cômputo geral das suas possibilidades estruturais, possa evoluir, ela tem de entender-se e de criticar-se de uma forma ampla e revivificante. O papel da arte, neste contexto, é tão inevitável quanto fundamental, e a busca da verdade na arte consubstancia-se neste entorno, como a desocultação do ser (no mundo) criativo.

sexta-feira, maio 25, 2007

o valor da arte enquanto facto social III

Durante um comprido período da História, o contacto com obras de arte produzia efeitos estonteantes. Desde a mais terna Idade Média que, na arte sacra e religiosa, as representações piedosas acalentavam a alma do leitor que assim tendia a comportar-se convenientemente, porque mesmo os iletrados colhiam o ensinamento bíblico através das mais diversas formas de arte plástica: «É pintura viva escritura e doutrina dos indoutos, como diz Decreto [de Graciano], mas aos contemplativos e letrados é acrescentamento de saber.». Se o retrato visível correspondia ao de uma mulher virtuosa ou santa, os leitores eram levados a catapultar-se naquela casta dimensão. Durante toda a época moderna, era corrente estimular-se a existência de quadros ou de outras imagens moralizantes e educativas numa casa habitada por crianças. Por outro lado, o macabro e o diabólico exerceram sempre outro género de motivações. Veja-se a capacidade de inquietar os homens que possuíam os capitéis e tímpanos das igrejas e mosteiros medievais, plenos de efeitos infernais, e alertando os homens para a emergência da casa de Deus, protegida e limpa do paganismo, do pecado, e distantes da mundanidade aterradora e impura.

Na actualidade, crê-se que o contacto permanente com as obras de arte, sejam elas plásticas, musicais, teatrais, ou outras, alimenta o espírito dos seres humanos, dignificando-o, elevando-o na sensibilidade e na cultura. Estes efeitos edificantes e taumaturgos das obras de arte cristalizaram-se na história, como temos vindo sempre a assistir.

De onde provém esta aura de fábula mágica contida nas obras de arte? Tratar-se-á de uma magia veiculada pelo poder da representação e dependente da maestria e virtuosismo do artista ou executor? Pode entender-se como o fruto de uma estranha empatia existente entre o sujeito e o receptor que, por existir, capacita a projecção na obra ou, por outro lado, estará o nosso imaginário programado para envolver-se garantidamente com estas manifestações da criatividade e da habilidade humanas? Advirá esta atracção pela arte do facto de associar-se, muitas vezes, ao prazer estético? É a arte o sonho visível, materializado, mundo às avessas, sem espaço nem tempo como aquele em que se situa o comum dos mortais? Somos ou não somos todos artistas?

A relação mantida com as obras de arte plasma-se ainda hoje na incorporação e na libertação. Na incorporação do visível e do invisível, do mundo e da Ideia que antecede a criação do Outro mundo imaginado, que não possui realidade enquanto tal mas que subsiste para além dela. Como um efeito fisiológico, de alimentação espiritual, os homens acreditam que, através dos sentidos, como uma entrada da, e para a alma, vão filiar-se aqueles factos, ou artefactos. A liberdade da arte é a sua provocação última, é a extirpação do pecado e dos vícios, dos desejos, da ansiedade e é a liberdade de dizer-se abertamente o que não se quer dizer. É a libertação do cosmos: «Portanto, a realidade não é o que está diante de nós, mas o que está por detrás, no espaço virtual do espelho.». É a liberdade do trabalho como assunção de felicidade e de acabamento da obra da natureza, ou de Deus.

music and words


Antony and the Jonhsons. I am a bird now.

http://www.antonyandthejohnsons.com/

quarta-feira, maio 23, 2007

da vida

A nossa percepção da realidade está cheia de projecções da nossa imaginação.


derivação de um pensamento de Filostrato

o valor da arte enquanto facto social II

A função da arte é, por tantos motivos, magnânima. E na discussão da intencionalidade funcional da arte, abrem-se novas possibilidades de indagação teórica. Theodor Adorno, entre outros tantos pensadores contemporâneos, avaliou a incompatibilidade da arte com quaisquer pressupostos funcionalistas. O esteta equacionou o facto de uma obra poder distinguir-se em grau de carácter, ou seja, assumir-se como sendo artística, ou não-artística, na medida do seu afastamento relativamente a qualquer tipo de função . Esta indagação verificou-se depois na sua redutibilidade, na medida em que o carácter de uma obra tem também de avaliar-se na medida da sua evolução histórica.

Considerando o trabalho arquitectónico como sendo um laboro artístico, temos de o avaliar também através do nível de funcionalidade criada, de adaptabilidade, de ergonomia, de exequibilidade prática, na mesma medida da sua predisposição estética e ideológica. Estima-se como útil a possibilidade de fruição de uma obra de arte seja ela qual for. Nesta questão da arte pela arte, deve anotar-se que a ausência deliberada de funcionalismo também colhe méritos espirituais e psicológicos de conveniência comprovada e, por isso mesmo, arrola um determinado nível funcional . A arte enquanto tal, mesmo na sua concepção mais abstracta e filosófica, detém utilidade, uma função e uma aplicabilidade que não podem desmentir-se, sob pena do esquecimento do Ser, na razão da essencialidade última da existência humana, sob pena do olvido da própria arte, apagada no seu desemprego como unidade que é provida de sentido e de significado.

Um objecto artístico tem necessariamente de ser incomodativo, de apelar aos estímulos e à razão, à nossa capacidade de envolvimento e de alterabilidade. Esta é a função e a entidade da obra de arte e é por isso que ela nos provoca sentimentos de repúdio ou de amor, de horror e de deleite, de aprazimento ou de desprezo. Ou ela tem esta capacidade, ou deixa de o ser, enquanto obra de arte. A composição pela composição, isenta de qualquer significado individual e social, desamarrada do pensamento programático que a deveria animar, dispensada de uma Ideia inicial, ou da «condensação simbólica da experiência», não deve determinar índice de qualificação artística, mas antes outras disposições praxísticas singulares. Não conseguimos, como assegurou Dino Formaggio, criar signos sem significado.

Relegamos desta exposição o valor da emoção, da sublimação, da libertação catártica, da libertação imaginosa e de outros conteúdos do discurso psicológico, para que nos possamos centrar no alcance da necessidade da arte, na sua urgência vertiginosa, na sua envolvência perene com a entidade humana, na sua imbricação com os meios de socialização.

Como é sabido, o primeiro e imediato carecimento do homem é aquele que se liga com os constrangimentos puramente fisiológicos, de manutenção e subsistência. Aliada a esta carência primária, o homem acumula uma outra que opera em concomitância constante: a necessidade de conhecimento. Trata-se de uma exigência que determina, ou não, o grau de humanidade do ser. Paralelamente a estas carências, e interligada com elas, surge a necessidade do homem posicionar-se no mundo na sua interioridade e exterioridade. O convívio humano com o macrocosmos é violento e esmagador e é através da necessidade de compreensão e de recolocação do homem no mundo que ele busca urgentemente um saber cada vez mais total, porque mais dominador e, por isso mesmo, supressor de ansiedade. O poder de alcance e de acção de superação sobre o real tornou o homem primitivo no moderno, e estabeleceu fronteiras entre a reacção inconsciente a um estímulo e a agilidade da razão.

Consciente da sua vulnerabilidade, da permanência efémera no mundo e convicto da sua corporalidade perecível, o homem desenvolveu outras possibilidades de ligação com o cosmo, por forma a dar-se a si alguma extensão no tempo e no espaço, alcançando-se então e definitivamente a dimensão mágico-religiosa da existência. A libertação do tempo e da perecibilidade construiu-se a partir deste constrangimento dos seres. A ideia de nascimento e de morte, o medo da convivência com a dor, a turbulência e a surpresa da natureza e do quotidiano e outros factores exasperantes, causaram no homem a nova necessidade de perenização.

De entre as várias formas de perenizar-se, o homem conjurou uma outra que, por envolver-se com a racionalidade, condiciona a humanidade e distancia-a ainda mais das restantes entidades mundanais. A “invenção da arte” surge também neste contexto, como uma prática mágica de Eterno Retorno, como um mecanismo de subordinação da realidade que se reproduz e re-inaugura, como uma sublimação do real que se transforma, como uma ponte entre o existir e o perecer, entre a vida e o que está para lá da morte. A invenção da Arte é a conquista da abertura do indivíduo, do grupo, do mundo e para a eternidade, numa comunhão cósmica de criação.

Surge a Arte como um novo mecanismo de incorporação da realidade, como uma eucaristia efectiva entre o Ser e o resto da existência física e metafísica. No acto da (re)criação material, o homem subordina o mundo inteiro depois de o ter incorporado. Esta ideia de produção artística como incorporação mágica e simbólica do mundo tem ainda de medir-se em concomitância com outros valores de ordem moral, espiritual, psicológica e social.

Regressemos ao tema da produção de imagens como medida de âmbito social e testemunhal. Não restam dúvidas quanto ao valor da peça artística, ou não artística, enquanto construção histórica, como fenómeno testemunhal, de eternização individual ou de um grupo ; quanto ao valor de emblemática de poder cristalizado no tempo; quanto ao valor de conservação e de reprodução de momentos, de ideologias, de crenças e de outras Ideias mais ou menos fundamentais que pretendem expelir-se, defender-se, ou manter-se para além do existir. Esta característica de efeito reminiscente que possui a maioria das obras de arte, é conseguida através da materialização de imagens com ditados iconológicos de proveito e de sustento.

São inúmeros os efeitos secundários produzidos pelas imagens. De entre eles colhem-se as combinações excêntricas, comprometidas com a alteração psicológica que produzem no espectador. No contacto com o estímulo percepcionado, a resposta produzida pela consciência pode explorar indizíveis caminhos de compreensão e de determinação comportamental. Foi conforme a esta potência imagética, conhecida desde a Antiguidade, que teóricos perenizados pela historiografia, opinaram sobre o bom uso das imagens.

A utilidade da pintura e da escultura, enquanto formas de apreciação visual, foi alvo de inúmeros textos de abonação. Leia-se, por exemplo, o efeito provocado por um bom quadro pintado, num excerto da obra de Lomazzo, o Trattato dell’arte della pittura, scultura, et architettura, publicado em Milão em 1584: um bom quadro «fará com que o espectador fique pasmado, quando vê o assombro pintado nele, que deseje a bela jovem por esposa, quando a vê pintada nua; que se sinta solidário, quando vê a aflição; sinta apetite, quando vê comer ricos manjares; que fique dormindo, perante a vista de um palácio de sonho; que se emocione ao contemplar uma batalha vivamente descrita e se agite, cheio de ódio e ira, ao ver acções vergonhosas e desonestas.». Esta ideia moderna que qualifica a obra de arte redunda na deliberação contemporânea, no exemplo de Ortega y Gasset quando quer explicar o que é a «arte artística»: o receptor diz que «é “boa” a obra quando esta consegue produzir a quantidade de ilusão necessária para que as personagens imaginativas valham como pessoas vivas. [...] E denominará arte ao conjunto de meios pelos quais lhe é proporcionado esse contacto com coisas humanas interessantes».

Esta virtude das imagens no geral, e da arte em particular, acciona-se porque interage com a capacidade de incorporação promovida por aquele que desde há séculos se manteve como o mais caro sentido humano: a visão.

terça-feira, maio 22, 2007

o valor da arte enquanto facto social I

Qual é a origem das obras de arte? Serão elas o fruto incondicional de uma emoção criativa, desabrida e desvinculada de qualquer sentido mais ou menos objectivo, ou de outra enformação, ou serão filhas de uma necessidade consciente da sociedade — enquanto estrutura inclusa e coesa, enquanto um todo formado por partes — que elas próprias transportam na sua essência, que elas reflectem, que elas incorporam, que elas ajudam a transformar, como entidades e agentes intelectuais?

Numa altura em que continuam a discutir-se abertamente as balizas de identidade do fenómeno artístico, numa época em que o enfoque das metodologias críticas e analíticas é constantemente revisitado, à luz de um saber cada vez mais totalizante, crítico e empenhado numa sustentada e abrangente visão dos objectos — artísticos e não-artísticos — e das suas possíveis relações com o homem e com a história, é ainda possível, tanto quanto urgente num ambiente de pesquisa multidisciplinar, o levantamento sistemático de questões metódicas que nos possibilitem um alvitre consertado com os novos caminhos de investigação.

Na procura de destinos de parceria entre a arte, a memória e a sociedade, várias portas têm de abrir-se com indispensável aperto. Logo ao primeiro entorno, é necessário buscar-se um sentido, uma função, um critério de identidade e de significação deste amplo e prolixo fenómeno, intimamente relacionado com a motivação, com a imaginação, com a libertação em catarse, com a criatividade, com o conhecimento, com a subjectividade e espiritualidade, com a simbologia, com a sublimação, com a ruptura e a inovação revolucionárias e, numa palavra, com a memória, enquanto recorte de fixação imagética e ideológica, indispensável no processo de sedimentação cultural das sociedades.

Antes de outras possibilidades de discurso, que são em número inimaginável, escrutinemos as balizas da produção de imagens, na medida em que parte delas constituem, de facto, obras de arte, enquanto outras estacionam num patamar limitado de carácter. Pergunta-se, ainda hoje, quais são os critérios de garantia artística de uma obra. Em que medida achamos a verdade de uma obra de arte? Quando pode garantir-se a imortalidade de uma, ou de outra obra? Qual é o atributo que vincula uma obra, ao mundo da Arte enquanto interpretação do real, ou como mimese, ou como mundo-outro de magia e desvinculação do território da realidade, ou de empenhamento crítico e com uma finalidade prática?

Mantém a Arte uma necessária relação com o Belo? A existir, como tem esta intimidade sido alterada no, e com, o tempo? A contemplação valoriza o Belo em detrimento da composição sígnica da obra?

Abreviadamente, o que distingue um objecto estritamente funcional de um outro acrescentado do valor de fruição estética? Podem ou não coincidir esses dois aspectos de processo sintético numa mesma estrutura formal? É a obra de arte uma coisa, ou é a arte uma ideia abstracta apensa ao carácter coisal do objecto? A arte é ou não uma potência sensível?

Em primeiro lugar, sabe-se que independentemente da categoria artística de uma determinada obra ela é, necessariamente, uma produção que possui uma inabalável relação com o ambiente humano. Uma obra de arte só o é, se for uma concepção da, e para a humanidade enquanto tal, se mantiver um carácter de objectivação , de sociabilização mais ou menos comunicativa, se possuir uma funcionalidade social, se constituir uma potência libertadora (do homem e do conhecimento), reveladora, revolucionária e deve trespassar a realidade, para a verter em obra . Só é Arte o que se põe em obra, como julgou Heidegger (1936) quando nos disse que: «Na obra, acontece esta abertura, a saber, a desocultação, ou seja, a verdade do ente. Na obra de arte, a verdade do ente pôs-se em obra, na obra. A arte é o pôr-se-em-obra da verdade» .

Esta relação da obra com a arte consuma-se em vários aspectos: por um lado, a obra de arte surge como um processo de desocultação do ente (do Ser em si), como uma abertura do homem essencial que se objectiva (materialmente) nas formas produzidas na obra que contém a verdade do absoluto de Si, que é a autenticidade ; por outro lado, deve levantar-se o véu do sentido verdadeiro do ente. O homem é ser e é ente e, para além dele, existem outros entes no, do e para o mundo, com espaço e duração próprios. A arte deve ser a desocultação do ser do ente e deve pôr a verdade em acção .

Resta agora a questão que diz respeito ao processo de criação artística enquanto condição de materialização (apensa à técnica de fabricação), ou de imaginação projectual ligado intimamente à realização humana, actuante e racional, e distanciado, por isso mesmo, da natura enquanto tal que é o ambiente que envolve a própria produção . A necessidade da arte é outro fruto da capacidade do homem projectar, destruir, reagrupar, refazer e ordenar. No caminho da vivência humana acha-se esta vertigem de afeição pelo novo. O homem gerou, ao longo da sua história enquanto ser no mundo, vários caminhos de sustentação num ambiente ininterrupto de descoberta e, de entre eles, destacam-se a arte e a ciência, unidos num propósito de comunhão e ligados através de um cordão vital pleno de seiva.

A necessidade de diminuição do grau de entropia no mundo abriu o caminho desejado da arte. Entre a ordem e a desordem, o homem instiga no trilho de encontrar um possível equilíbrio entre os sentidos e da razão. Neste precipício da lógica, o percurso histórico do homem também se enlaça com a carência da afabilidade. A procura da benignidade, a par da regra e da norma, rasga uma porta que se vai abrindo ao encontro com o belo.

E que relação deve possuir a arte com a beleza? O grau de empenhamento artístico é variável na razão da beleza? O caos da natureza também é belo, para os homens, desde que se comprometa com a serenidade, com a delicadeza, com a agradabilidade, com a paz, com a utilidade e com a vida. A beleza afecta-nos a sensibilidade, provoca-nos exaltação e induz-nos ao deleite contemplativo e a arte eleva-nos ainda mais, para além do Belo enquanto valor absoluto, do belo natural e da beleza da aparência criada. Numa obra de arte total, os valores expelidos não procuram o enlevo prazenteiro, no sentido da correcção estética, mas outro comprometimento cognitivo que pode arrastar consigo, como consequência da objectivação, um resultado esteticamente agradável. Um exemplo deste paradigma traduz-se radicalmente na anti-arte (e na ausência de representação, de figurativismo, de processos tradicionais de materialização, de canonicidade normativa, etc.) contemporânea que não nega a artisticidade, nem recusa o grau de empenhamento social que possui, inevitavelmente, como facto artístico. A afectação que provoca a produção artística ultrapassa o terreno da sensibilidade estética (e por isso uma obra de arte nunca pode agradar a todos com a mesma intensidade), para provocar novas emoções relacionadas com o intelecto, com a intuição e, pelo mesmo efeito, com a memória.

Jacopo Tintorreto II



Jacopo Tintoretto (1518-1594)

No Museu do Prado a entrada, a 18 de Maio, no dia internacional dos Museus, não era paga e nem havia grandes filas para entrar-se na ala de exposições dedicada a Tintoretto, a quem Vasari classificou como «el piu terribile cervello che abbia avuto mai la pittura», ou ainda como extravagante, caprichoso, rápido e resolvido, e o cérebro mais extraordinário que jamais havia tido a pintura.
O primeiro lanço de obras não é o mais significativo, passando o seu primeiro auto-retrato de belo e jovem homem com um olhar doce e enorme, com miradas de longo alcance e a Sagrada Família com São João Baptista, Zacarias, São Francisco, Isabel e Santa Catarina (1540), quadro largo mas com um óleo ainda pouco fluído.
Surge depois Jesus entre os Doutores (1542), uma das tantas obras inacabadas do autor, com nítidas influências de Rafael na disposição das imagens pintadas com soltura. Nesta pintura, Tintoretto demonstra-se já como um artista desmedido, amante das formas dinâmicas, transformadas pela acção e desenhadas em plena actividade. No primeiro plano saltam, imensas e prenhes, as texturas de gente movida e larga, e lá no fundo do quadro feito de perspectivas complexas, está Jesus, dissimulado entre as personagens que povoam a cena, esboçadas mas com justa vida.
Data de 1545 o fabuloso óleo de Vénus, Vulcano e Marte, retrato do flagrante mítico mas concebido de forma irónica, já que na vez de tapar os corpos do par adúltero, o pintor decide colocar Marte escondido sob a mesa do quarto na altura em que Vulcano tenta encontrá-lo, em vão, sob os panos transparentes que cobrem a figura desnuda e sensual da mulher traidora. Entretanto, Marte surge debaixo da mesa ao pé da cena e é descoberto pelo cão que lhe ladra enquanto ele o tenta calar. No desenrolar da situação em auge de tragédia cómica, está a figura de Cupido dormente, paralelo e sem acção no pano de cena.
No final dos anos quarenta, Tintoretto desenhou e pintou uma das suas grandes obras-primas: o Lava-pés. Trata-se de um quadro que, por mais tempo que nos detenhamos a contemplar, não nos surge uma nem pequena sensação de cansaço. O pintor destruiu o espaço para recompô-lo de forma lúdica e idealizada, miscigenando a ilusão com a realidade palpável do quotidiano feito de gente viva e em plena acção mas em silêncios. É um quadro sublime e cheio de referências, nas alusões aos tratados de arquitectura vigentes e nas alusões simbólicas internas. Esta obra possui uma textura invulgar, feita de luz e de escorços vigorosos, feita de efeitos perspécticos concebidos com rara mestria. O quadro não foi concebido para ver-se de frente, mas de lado, e, de cada um dos lados, o nosso olhar alcança momentos de tridimensionalidade assustadores, como se as figuras saltassem na cor para fora do espaço plano, provocando uma ilusão do olhar verdadeiramente arrepiante. E a par da ilusão está a realidade da carne pintada sobre os ossos das figuras terríveis, pitada sob as roupas nas suas diversas combinatórias de panos e de brilhos. O cenário é o de um teatro de vida melancólica, em que Cristo, na sua humildade de homem são, lava os pés a Pedro com os braços nus e com a maior naturalidade que é possível…
São Jorge, São Luís e a Princesa (c. 1552) é outro quadro arrebatador. A princesa está reclinada sob o Dragão defunto e, de colo amplo, ergue o olhar titubeante na direcção do seu protector arraigado em trajes de guerra luzentes. Trata-se de uma dupla romântica e musical. Mas a figura arrebatada da Princesa reflecte-se, entretanto, na armadura de São Jorge, fazendo com que o seu olhar de mulher narcísica se fixe na roupa do guerreiro quebrando a comunicação que devia estabelecer-se entre ambos. São Luís acompanha a cena mas, ainda assim, ele está ausente do desenrolar dos acontecimentos, repousando o seu olhar de rapaz doce na arma quebrada de São Jorge, quedada em escorço aos seus pés desnudos.
Susana e os Velhos mereceu um restauro completo mesmo antes de integrar a exposição madrilena, e ainda bem, porque o corpo rotundo da jovem nua redobra agora em vida e em luz, atingindo lugares de perfeita sintonia com o mundo supra-lunar. É mais um quadro de fascínios, onde a carne ganha fortuna, também no contraste vivo com o mundo terreal feito de elementos vegetais. É um cálice de luz que aqui se oferece sem misericórdia pelo olhar distraído do receptor que, atraído pela luz das carnes soltas da mulher, assim se enamora das suas formas, sentido os cheiros de mundo e de flores exalando das entranhas das tintas finas e transparentes que o enformam. Nem é paz nem exaltação que se sente neste contacto com o quadro, mas a suavidade de um suspiro quieto de paixão doce, e uma breve arrebatação dos sentidos mais adormecidos.
Daqui me fixo numa das tantas últimas ceias pintadas pelo autor. Esta que se expõe em Madrid, e de que agora falo, é a de 1563-1564 (Igreja de São Trovaso; Veneza), escolhida não ao acaso, mas por motivos presos com a minha sensibilidade pessoal. É outro quadro de encontros, feito como se de uma cena doméstica se tratasse. Nesta ceia, Judas não veste de amarelo, mas usa umas calças de um vermelho tão forte e impregnante que avassala o nosso olhar canalizado pelo seu aro de cor. Cristo distende-se na perspectiva torcida do quadro, numa pose relaxada e paternal, pousando a mão sobre as costas de João no momento em que ele soube que o seu Mestre fora traído. Ao fundo da cena estão fixadas duas figuras imaginárias, como Tintoretto tanto gostava de pintar, feitas de finas camadas de uma tinta diáfana e dissolvida, como almas do outro mundo tocando este. A um canto da cena está um menino da época, calado e quieto na sua timidez, e como que sabendo que o seu lugar não era aquele mas que, como por descuido, o pintor foi integrar, licenciosamente, porque ali passara sem querer.
Na Origem da Via Láctea (c. 1577-1579), o pintor foi exuberante e faustoso no acabado e na escolha das tintas e dos escorços das suas figuras voantes e sem roupa. O Rapto de Helena merece encómios irrepetídos, (também pela ideia da comissão da exposição que integrou uma ala dedicada ao processo criativo do pintor, mostrando como do nada nascia o tudo, e como do branco da tela foi surgindo esta pintura assombrosa). É um quadro verdadeiramente místico, que congrega o finito das formas com o non finito de outros lugares, em outras formas. E do traço largo e firme e presto do Tintoretto maduro nasce esta obra de arte sem tempo e sem espaço, mas com vida própria de arte com ganas de nunca perecer. É de movimento e de som que se fizeram estas formas gigantes de homens e de mulher cálida e sensual, de olhares vagos, aquosos e melancólicos, no seu destino trágico.
E o nervo do pintor rege o Martírio de São Lourenço, em pleno auge de cor, de luz e sombra terríveis, porque macabra cena não podia pintar-se sem o dramatismo amargo que rege as mortes tremendas.
Saltando tantos outros quadros magníficos, termino esta curta viagem no outro rosto do pintor, já com tantos anos de vida cumpridos, de fadigas e de trabalhos rápidos, no rosto deste homem mistério que não viveu tragédias, para além das que imaginou com magnífica e larga percepção extra-mundanal.
Ficou, desta exposição madrilena, um amargo de boca por não saber pintar, por não conseguir imaginar, eu mesma, o negro fazendo saltar a luz. Por não conseguir fazer sair nunca, das minhas mãos vazias, uma réstia de cor pregnante. Mas vim mais sólida, robustecida, porque o contacto com o belo nos deixa assim a flutuar sobre o mundo, nos deixa assim esta brecha para o outro mundo, o dos outros homens que, porque vieram, nos fazem sentir como gente que vale a pena.

quinta-feira, maio 17, 2007

Museo del Prado



Jacopo Tintoretto, Ultima Cena

Parto daqui a pouco, embora quase em fim de tempo, mas ainda em boa hora, para Madrid (Museo del Prado).
Trarei comigo a luz e a cor de um dos mais fascinantes pintores de sempre e, ao regresso, tentarei escrever o que senti, se na contemplação não me deixar ficar por lá mesmo.

quinta-feira, maio 10, 2007

Da criação

Chama-se criação levar as coisas da inexistência à existência.

Derivação de um pensamento de Platão

Study for Fulfilment



Gustav Klimt