segunda-feira, junho 11, 2007

o valor da arte enquanto facto social V

O valor da obra de arte tem vindo constantemente a amotinar-se e a dar lugar a alternativos caminhos de abertura ao mundo. À medida que as civilizações se complexificam, também a arte, que é sucedânea desta evolução, conhece novas realizações mas nunca novas intencionalidades, a não ser que a ruptura da humanidade leve ao esgotamento da noção de obra de arte.

Alteram-se as técnicas, o uso dos materiais, os feitios, os gostos de época, o garante de afirmação que etiqueta o fenómeno como artístico ou não artístico, mas nunca consegue fugir-se aos motivos últimos que levaram à concepção. Os processos formais ofuscam-se quando a obra possui a garantia de efeito que lhe oferece fortuna; a planimetria do gosto é secundária, quando o tempo comprova a imortalidade do fenómeno; o feitio obedece a um estabelecimento mais elevado que é o conteúdo expresso e expressivo da obra, e estes requisitos variáveis conseguem por vezes elevar, no patamar do critério e do juízo, as obras que foram tidas, durante séculos, como menores e decadentes.

Se a obra de arte é uma materialização ideológica, é-o também porque consegue opor-se à sociedade existente, como argumentou Marcuse que garantiu conseguir-se a autonomia da arte quando ela incarna um preceito categórico: “as coisas têm de mudar” .

A obra de arte, na sua relação factual com a sociedade, estima-se de vários modos que são, por vezes, altamente dissonantes, dependendo, obviamente, do lugar histórico que ocupam. Não obstante este constante desalinho que é fruto das várias etapas da evolução humana, importa captar o valor absoluto do facto artístico para que consigamos estabelecer um caminho de contacto teórico. Nesta contextura, retomemos a fórmula já referida quando se disse ser a arte uma forma de domínio do real exterior e interior do homem.

O facto artístico possui um valor social de superação e de crítica, ou de alinhamento e comunhão, dependendo, obviamente, do grau de tradicionalismo e modernidade do fenómeno, dependendo do ambiente social para (e pelo) o qual foi concebido e pelo qual irá ser apreciado, fruído e digerido. A função do artista é recriar o mundo, mas com base não no mundo celestial que já se concluiu ser inimitável, mas aceitando as leis internas que regem este lugar vivente. A função do artista é também a de recriar as emoções sentidas pelo homem no contacto com a mundanidade, é reinventar a vida na matéria que suporta a arte... Ele deve comprometer-se, e compromete-se com a agência terratenente e é neste mundo de laboro que ele se maneja e que se empenha.

Se durante a Idade Média se concebiam obras para agradar a Deus e para oferecê-lo ao conhecimento; se os deuses, os anjos e os santos foram envestidos com um rosto para se aproximarem do entendimento humano, hoje constrói-se essencialmente para o Homem e para a sociedade dos homens. O habitáculo de Deus passou a ser o indivíduo, ao invés da catedral. Neste sentido, a arte empenha-se num crescendo constante de consciencialização social, ganhando cada vez mais peso e comprometendo-se de outra forma, mas sempre assumida na sua relação com a estrutura social da humanidade.

Se durante séculos grande parte das obras perderam de si o tempo, se a maior parte dos artistas replicava valores absolutos e abstractos inabaláveis — revisite-se o exemplo da plastificação românica à luz da nova historiografia artística — como a fé nos santos e santas, nos actos piedosos ou, genericamente, na sacralidade celestial, lentamente foram abertas as portas ao comprometimento com a ilustração de época, nos seus sistemas económicos, sociais e ideológicos.

O papel do historiador e do crítico da arte tem de envolver-se com este arrojo de intenções multiformes. Tem de fazer romper do invólucro das formas estéticas, ou inestéticas, o sortilégio, a explanação, o presságio, o significado último e total e o empenhamento em missão de escrita vinculada.

Se na actualidade assistimos a um acelerado rompimento dos indivíduos com as formas de arte, no cumprimento de um sórdido prognóstico do fim da arte e da nascença da forma fútil, vácua e sem ideologia ou valores, não estamos a dar crédito à fórmula da Estética hegeleriana, de um inevitável renascimento, porque a arte pode nascer do nada, mas não deve caminhar no sentido da sua nulificação. O constante afastamento das ideologias, das crenças racionais ou metafísicas — que se exploram hoje por alternativas incertas —, o alheamento provocado pela dissimulação da liberdade em libertinagem, o excesso de tudo e de nada, a aceleração da ruptura das economias, a vanidade e o delírio provocam, na actualidade, a decadência da arte. Trata-se de uma decadência bilateral ou comutativa, porque também — e mesmo que não queiramos cair na tentação esteticista — o «mau gosto artístico e estético arrasta inexoravelmente o mau gosto moral e político, nos quais normalmente tem origem a espiral» .

O fim da história materializou-se, afinal, no derrube dos sistemas filosóficos, no acanhamento de uma religião verdadeira e, genericamente, na ocultação do Ser, numa perspectiva autenticamente ontológica. Este caminho atraiçoou a arte que, de per si, deveria consubstanciar e veicular ideias. A sua ausência, acarretou o alheamento do conteúdo e a exaltação da forma.

O retrato dos nossos tempos perturbados é a imagem da nossa fuga sistemática. O apagamento da arte enquanto entidade absoluta é o reflexo de uma sociedade esboroada que se esgotou.

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