quinta-feira, setembro 20, 2007

Tributo a Friedrich Nietzsche

«Deixando de lado o facto de ser um décadent, sou igualmente o seu contrário. A minha prova disso é que, entre outras coisas, escolhi sempre instintivamente os meios correctos nas piores condições; ao passo que o décadent em si escolhe sempre os meios que lhe são nocivos. Como summa summarum, eu era saudável; como mero ângulo, como especialidade, era décadent. A energia para o absoluto isolamento e a libertação das condições habituais, a coerção feita a mim mesmo de não me deixar curar, tratar, medicar ─ tudo isso trai a incondicional certeza instintiva sobre aquilo de que estão eu acima de tudo necessitava. Peguei em mim mesmo, restituí a mim próprio a saúde: a condição para tal ─ todo o fisiologista o admitirá ─ é estar fundamentalmente são. Um ser tipicamente doente não pode tornar-se são, e menos ainda curar-se a si mesmo; para quem é tipicamente saudável, estar doente pode, pelo contrário, ser mesmo um enérgico estímulo de vida, de mais vida. Assim me surge agora efectivamente aquele longo período de enfermidade: descobri, por assim dizer, de novo a vida, avaliei-me a mim próprio, saboreei todas as coisas boas e até mesmo as coisas pequenas, como não é fácil que os outros as possam saborear ─ da minha vontade de saúde, de vida, fiz a minha filosofia… Atenda-se pois ao seguinte: os anos da minha mais baixa vitalidade foram aqueles em que deixei de ser pessimista; o instinto do auto-restabelecimento proibiu-me uma filosofia da pobreza e do desânimo… E onde se reconhece no fundo a boa constituição? Em que um homem bem constituído é agradável aos nossos sentidos; em ser talhado de uma madeira que é ao mesmo tempo dura suave e olerosa. Apetece-lhe apenas o que lhe é benéfico; o seu agrado, o seu prazer cessa quando a medida do suportável é ultrapassada. Adivinha remédios contra o que causa danos, utiliza casos nocivos em sua própria vantagem; o que não o mata torna-o mais forte. Compila instintivamente a sua suma a partir de tudo o que vê, ouve, vive: é um princípio selectivo, e deixa de lado muitas coisas. Está sempre na sua sociedade, lide ele com livros, homens ou paisagens: honra ao escolher, ao admitir, ao confiar. Reage lentamente a todo o estímulo, com aquela lentidão que lhe ensinaram uma longa circunspecção e um orgulho deliberado ─ perscruta o fascínio que dele se aproxima, mas está longe de lhe sair ao encontro. Não crê nem a “infelicidade”, nem na “culpa”: sente-se realizado, consigo, com os outros, sabe esquecer ─ é suficientemente forte para que tudo redunde em seu maior proveito. ─ Muito bem, sou o contrário de um décadent: pois descrevi-me justamente a mim mesmo.».

Friedrich Nietzsche, Ecce Homo, trad. Artur Morão, Ed. 70, Lisboa, 2002, pp. 23 e 24.

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