sexta-feira, fevereiro 01, 2008

da inércia


Hieronymus Bosch, O barco dos loucos,
Óleo sobre madeira, 1490-1500,
museu do louvre, paris


Quem deliberadamente provoca cegueiras é bemquisto no presente, porque passou a viver por nós, e porque, pensa o povo assim desafogado, fica lá com as nossas estafas. O sistema passou, deliberadamente, a viver por nós, a escolher por nós, a pensar por nós, a exigir por (e de) nós, e a cegar-nos, objectivamente, num culto de dirigismo provinciano, mas eficaz. Assim se constrói o derrube do Iluminismo, assim se constrói um sistema déspota e inumano, assim se derruba a liberdade de pensamento e a criatividade na acção dos sujeitos que deviam, eles mesmos, viver cada uma das suas curtas vidas. O que me espanta é verificar que um sistema corrupto, autoritário, proibitivo, caciquista, ainda que acéfalo, mas integrador, não gera confrontos, mas apenas algumas amofinações íntimas e caseiras. Os sujeitos, assim devidamente integrados neste sistema característico, passam a experimentar o enfado, e o caminho resolve-se por sucessivas inércias que, para mim, são verdadeiramente pungentes. Este sistema de que falo é perfeitamente globalizador, fazendo uso de uma maquinaria incipiente, mas altamente eficaz para enformar os homens. As estruturas deste sistema, ainda que desorganizado e amador, porque sujeito a uma liderança pouco inteligente, vão tomando conta de todas as acções dos indivíduos a elas sujeitas, e que assim se livram das suas peles, todas diferentes, para envestirem a nova roupa do padronamento ordeiro e benovolente.

As pernas das sociedades começam a partir-se lentamente, através de uma estrutura educativa programada e limitativa, porque o pensamento, o conhecimento e a educação podem, ou devem, consubstanciar verdadeiros obstáculos ao crescimento dos sistemas prepotentes. Assim se foi e vai construindo este país, educado pelas televisões de má fortuna que fazem viver o povo as outras vidas, que não a dele, que é mísera e cinzenta. Assim se vai construindo este país, limitando devagarinho o acesso às ciências sociais e humanas desde a mais tenra idade, porque o livre pensamento crético e adulto não se conforma com dirigismos.

Assim se constrói este país, com comandos de mau gosto mas eficazes, porque já se educou suficientemente o nosso povo no sentido da mais sã e pueril convivência com o inestético e com o vil, com o fácil e com o vulgar. Assim se derrama um sangue cru, mesmo quando a situação gera conflitos internos, mas irresolúveis por falta de organização. O povo arde agora em febre, mas arderá até morrer, sem protecção. O povo arde na fogueira da miséria, mas não sabe como fazer para virar o vento. O povo enferma com os maus exemplos dos que lhe estão acima, e por isso não tem olhos para a entender todo um sistema de valores que já há muito se perdeu.

Quem teve a sorte de nascer entre o século XX e a presente centúria carrega um fardo pesado, ou fardo nenhum, morrendo depois em vão. E para que não se morra em vão, é preciso viver com amor e com ódio, e com ganas de pensar e de sentir... mas creio que já é tarde demais. É que mesmo quando aqueles sistemas, como o nosso, ainda que mal estruturados, passam desavergonhadamente de uma corrupção em esfera própria, para baixar à extorsão crua dos sujeitos que supostamente protegem, ainda assim não há vislumbres de repúdios. É preocupante e deprimente anotar que os sujeitos assim governados assistem incólumes ao desenrolar de uma acção programada, permanecendo na realidade dos dias numa inexorável inércia.

É assombroso como de facto a história nos ensina tanto sobre a existência e sobre os homens. No desenrodilhar destes tantos anos e dias, por vezes penso que melhor será mesmo deixar-me enformar pelo sistema, ou deixar-me formatar com o tão-pouco, o tão-rude, o tão-fácil que nos vem de cima. É que assim, se não tiver mesmo de pensar, porque os sistemas o farão por mim, passarei a um estado quase impoluto, vivendo meus dias candidamente e sem esforços, para além dos que dedico, porque sim, ao meu ganha-pão, para depois morrer em vão, coisa que deve ser melhor do que experimentar a dor.

Tenho agora, no meu caminho, e ao fundo desta recta que se esvai, trás grandes possibilidades. Ou pronuncio o nome do meu país com pudor, dissimuladamente, ou num sussurro retirado e decoroso, ou fujo da realidade alienando-me ainda mais, ou abro de vez o meu grito aflito para tentar parar o tempo e rebobinar este filme que terá, para mim, de refazer-se inteiro.

É tempo, justamente, de rebobinar este filme e de relembrar que devemos ousar pensar por nós próprios. É tempo de rebobinar o filme e pensar na liberdade. É tempo de rebobinar o filme e viver a solidariedade, a fraternidade, a igualdade, a criatividade, o livre pensamento, a salubridade, a fantasia, a humanidade... É tempo de rebobinar o filme e repensar o silêncio, a solidão imposta, o medo e a alienação, porque é tempo de revolta e de renúncia. É tempo de repensar a vida e é tempo, acima de tudo, de fazer repensar a vida aos que vivem na insensatez do, e no sistema.

5 comentários:

Orlandini disse...

Aqui não sei como tratá-la, pois sou seu aluno mas frequentador assiduo deste seu espaço. Uma das minhas maiores criticas à sociedade de hoje prende-se mesmo neste factor de inércia e formatação intelectual de que é alvo o nosso mundo. A todos os níveis e em todas as esferas sociais ou culturais. Na música, no cinema, nas artes plásticas...
Costumam-me perguntar porque não gosto de U2, mas porque tenho de gostar do que toda a gente gosta? Não questiono a qualidade dos senhores, mas considero música fácil e impingida. Não gosto pronto.
É apenas um exemplo, e de entre este existem muitos mais e a professora concerteza sabe disso.

Bem haja ;)

Carla Alexandra Gonçalves disse...

Viva!
antes de tudo, muito obrigada pelo comentário e pela sua assiduidade, que me conforta.

os níveis de formatação de que falava eram outros, mas esse que refere também é válido, claro, e prende-se com outros fenómenos, que estão ligados a modas e a forças de expressão mais ou menos globalizadas, entre outros factores... no post referia-me à inércia do povo português relativamente ao sistema que o governa, ou relativamente às normas, ou relativamente a quem dita determinadas normas que, para mim, são já perfeitamente ignóbeis, na grande parte das vezes. no post falava daquilo a que já me habituei chamar, verdadeiramente influenciada por Marcuse (entre oturos), o Estado do Bem-Estar que, capazmente, comanda a vida dos cidadãos (também) de forma a torná-los incapazes. este é um registo muito baixo, mas trata-se de um modo de liderar um povo de modo dirigista e déspota. para abalar a inteligência dos cidadãos (de forma a que eles se deixem governar sem demandas), estes estados assim erguidos limitam, logo à partida, os níveis culturais e o livre pensamento dos povos que governam. É que se entendermos que pensar é uma actividade que devemos delegar em quem está acima de nós, libertando-nos para que possamos fazer outras coisas mesnos trabalhosas, então estamos a perder-nos e a cumprir o plano pérfido desse Estado, entende?
E a inércia assim gerada cria ondas de choque tremendas, arrastando consigo os homens impregnados deste mal do século: ninguém se importa.
Olho à minha volta e vejo que não há ninguém que se importe com coisa alguma, e isso provoca-me um conjunto de emoções que passam pela tristeza, pela revolta e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, pelo medo. pelo medo de que os valores que perdemos já, sem que nos déssemos conta, se percam irremediavelmente. um desses valores já perdidos é, justamente, aquele porque luta o homem desde há séculos: a liberdade. e quando perdemos a liberdade sem que nos possamos dar conta... é porque a cegueira, a preguiça, e a ineptidão tomou mesmo conta de nós. o povo português é mesmo assim... deixa-se ir sem ganas de ripostar.

até breve,
carla

Orlandini disse...

Mas por acaso era por esse mesmo caminho que queria ter seguido no meu comentário, mas não o quis, ou melhor perdi-me, no raciocinio ao não querer enveredar pelo caminho demasiado politico. E não quis precisamente por pensar ser algo suspeito em falar de Estado ou de politicas controladoras da mentalidade humana. Mas quando fala da sociedade portuguesa o caso é bem mais grave, se fossemos só nós estava o mundo mais livre. E não estou a deculpar o Estado potuguês, subscrevo na totalidade das suas palavras e talvez até fosse muito mais "vigoroso" nas palavras que escolheria para descrever esta filosofia ou doutrina do pensamento único que assola as mentalidades de todos os estratos sociais e de todo o mundo. Talvez escreva sobre este assunto aqui no jornal local, é que estou com o raciocinio dividido entre este seu espaço e a demografia.

Bem haja professora ;)

Carla Alexandra Gonçalves disse...

O meu discurso não é político, nem partidário, nem coisa que o valha. o meu discurso é escrito em tons diarísticos, e apenas escrevo neste diário porque me tenho esquecido do outro, feito de folhas de papel que se estragam mais, mas que também ainda resiste, cheio de palavras que não valem nada, porque as palavras, de facto, de nada nos valem senão para que nunca nos esqueçamos delas, talvez para que não nos esqueçamos de nós... e quando ando mais irritada... nota-se logo. a minha intenção não é outra senão esta: a de escrever num diário electrónico eventualmente lido e partilhado (coisa estranha e sem explicação?!). não quero mudar o mundo, não quero fazer alertas, não sou uma mulher política, politizada ou partidarizada. também não sou contra o Estado, claro! sou apenas uma mulher que tem cores por dentro (mais do que por fora) e que tem luzes internas (também mais do que por fora...) e que, quando se sente mal, escreve, porque lhe apetece, porque parece que fica mais relaxada depois de o fazer, ou porque assim se sente bem. Também escrevo quando estou bem, rejubilante (poucas vezes, estas segundas) e também escrevo quando estou a viver paixões (sejam quais forem), enfim... sou uma mulher que, acima de tudo, expele. se há dias em que a escrita é mais ideológica, ou mais quente, ou mais fria, ou mais pacífica, ou mais terrível. e se ela às vezes é mais provocadora, por outras é mais ausente. e se a escrita às vezes é transparente, às vezes é mais chegada ao meu real.
e com despreocupação me despeço, limpando os tons «políticos» a um texto escrito por uma mulher que vive com muita naturalidade, mas que também se inquieta.
tudo de bom
carla

Orlandini disse...

Talvez eu peque por um dia sonhar e fazer o mundo mudar eheheheh
Não quis dizer que tinha alguma tendencia politico-partidária, o problema é mesmo eu por vezes não conseguir desligar essa minha faceta, e como a pratico com o coração deixo-me levar pela emoção com alguns dos temas que me melindram mais.
Relembro, neste o meu sentimento está com o seu pensamento.
Volto para a Demografia.
Até já