terça-feira, fevereiro 12, 2008

tributo a Karl Popper




«O grande movimento de libertação que teve início no Renascimento e que conduziu, através das muitas vicissitudes da Reforma e das guerras religiosas e revolucionárias, às sociedades livres em que os povos de expressão inglesa têm hoje o privilégio de viver, foi um movimento todo ele inspirado por um inigualável optimismo epistemológico, por uma visão extremamente optimista do poder humano de discernir a verdade e adquirir conhecimento.

No cerne desta nova e optimista perspectiva acerca da possibilidade do conhecimento reside a doutrina de que a verdade é manifesta. De acordo com ela, é possível que a verdade esteja velada. Pode, todavia, desvelar-se. E se não se desvelar por si própria, poderá ser desvelada por nós. Não será, talvez, fácil remover o véu. Mas assim que a verdade nua surgir revelada perante os olhos, nós teremos o poder de a ver, de a distinguir do que é falso, e de saber que ela é verdade.

O nascimento da ciência e da tecnologia modernas foi inspirado por esta epistemologia optimista, cujos principais representantes foram Bacon e Descartes. Ensinaram eles que homem nenhum necessita de recorrer à autoridade para saber o que é verdadeiro, visto cada um transportar em si as fontes do conhecimento ��� seja o poder de percepção dos seus sentidos, que pode aplicar à cuidadosa observação da Natureza, seja no seu poder de intuição intelectual, que pode utilizar para distinguir a verdade do erro, recusando-se a aceitar qualquer ideia que não tenha sido clara e distintamente percebida pelo intelecto.

O homem pode conhecer: por isso pode ser livre. É esta a fórmula que explica a conexão entre o optimismo epistemológico e as ideias do liberalismo.
Esta conexão tem por contraponto a conexão oposta. A descrença no poder da razão humana, no poder humano de discernir a verdade, está quase invariavelmente ligada à desconfiança no próprio homem. Desta forma, o pessimismo epistemológico surge historicamente associado a uma doutrina da depravação humana, e tende a conduzir à exigência da instituição de tradições fortes, bem como à implementação de uma autoridade poderosa que salve o homem da sua loucura e perversidade.

[...] Mas como podemos nós cair em erro se a verdade se manifesta? A resposta é: pela nossa pecaminosa recusa em ver essa verdade manifesta; ou então, porque as nossas mentes albergam preconceitos inculcados pela educação e pela tradição, ou por outras influências maléficas que terão pervertido os nossos originalmente puros e inocentes espíritos. A ignorância pode ser obra de poderes que conspiram para nos manter ignorantes, para envenenar as nossas mentes, enchendo-as de falsidades, e para cegar os nossos olhos, de maneira a não poderem ver a verdade manifesta. Tais preconceitos e tais poderes serão, então, fontes de ignorância.».

Mas, na realidade, e para Popper, a verdade não é manifesta. Esta falsa epistemologia (a positiva e de tipo cartesiano, e a negativa) trouxe, embora, grandes progressos intelectuais, mas também causou inúmeros episódios trágicos, no que concerne à história da humanidade, porque ela esteve na base do fanatismo.
A nossa intuição intelectual engana-nos, de facto, e o nosso intelecto não é uma fonte do conhecimento (somente porque Deus é uma fonte de conhecimento).
No caminho do conhecimento está aquilo a que vulgarmente se chama um método. Para alcançar a verdade temos de observar criticamente tudo quanto nos rodeia, temos de conjecturar heuristicamente sobre o que observamos, temos de ultrapassar os esquemas preconcebidos, temos de nos colocar num lugar de dúvida, temos de ajuizar criticamente, temos de estar cônscios de que, a cada passo que damos, devemos dar outros mais, temos de experimentar, temos de verificar, temos de refutar, temos de criticar sempre aquilo que nos é (ou foi) dado como certo, mesmo as nossas próprias teorias e mesmo as nossas próprias suposiões, temos de conseguir alterar o que foi estabelecido antes de nós (ou modificar o conhecimento anterior), temos de querer alcançar o conhecimento (mesmo sabendo que nunca alcançaremos a verdade).


Numa justa conclusão, uso as palavras de Popper quando escreveu, baseando-se nas ideias de Kant, que:

«Será uma decisão crética da nossa parte obedecermos ou não a uma ordem, ou submeter-nos ou não a uma autoridade.»


Quanto mais conhecemos, mais certos nos tornamos da nossa imensa ignorância.
(1961)
Cf. Karl Popper, «Acerca das fontes do conhecimento e da ignorância», Conjecturas e Refutações, o desenvolvimento do conhecimento cientéfico, trad. Benedita Bettencourt, Livraria Almedina, Coimbra, 2003, pp. 20-21, 22-23 e 47.

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