terça-feira, fevereiro 17, 2009

... de João de Ruão ... para o espaço



João de Ruão, Profeta, Capela do Santíssimo Sacramento, Matriz de Cantanhede,c. 1547

2 comentários:

perplexo disse...

Uma das razões do meu fascínio pelas obras de arte, sobretudo pinturas, além do deslumbramento estético, tinha que ver com as leituras iconográficas que delas fazia (faço). Alerta para as leituras psicanalíticas, como observador pós-Freud, muitas vezes encontrei indícios extraordinários de que a obra observada continha elementos que, a serem levados à «letra», apontavam para vivências bizarras da religiosidade.
Aprendi no curso de HA na FLUL que a grande religiosidade e o controlo ante-Revolução Francesa não permitem atribuir a imagens dessas épocas intenções que não as da estrita devoção.
Tendo feito a cadeira de Psicologia da Arte na UAb, aprendi que só o artista pode ser analisado psicologicamente, e nunca a obra de arte.
E, no entanto…
Fico muitas vezes com a sensação de que algumas pinturas parecem ter a intenção de estimular a libido de quem a observasse. Com a capa da mais devota intenção.
Há dias, visitei a Fundação Medeiros e Almeida. Lá me deparei com uma Virgem do Leite atribuída ao Mestre da Lourinhã:
http://www.fundacaomedeirosealmeida.pt/index.asp
Infelizmente, a imagem no site não permite perceber os pormenores. A Virgem aponta um seio totalmente exposto ao rosto do Menino. À esquerda em cima, S. José olha com grande interesse para o rosto do Menino/para o seio. À direita, um putto olha para o mesmo motivo segurando uma maçã; à esquerda, outro putto olha na mesma direcção, segurando horizontalmente uma flauta.
Sempre achei incoerente a exposição do nu em espaços frequentados por indivíduos a quem era fortemente recomendada a castidade.
Nesta pintura, como em muitas outras (Frei Carlos), sente-se que a exposição do seio é desnecessariamente excessiva. O olhar de todos centra-se no seio, com um interesse desmedido.
Se uma leitura fálica da flauta (desnecessariamente apontada à Virgem) pode ser abusiva, a maçã na mão do outro putto tem uma leitura inequívoca de desejo, tentação.

Perguntas:
1. Como interpretar a inserção de todos os elementos referidos desta pintura, num contexto devoto?
2. É impensável atribuir a pinturas do século XVI destinadas a espaços religiosos, (ou que não fossem!) intenções e funções lúbricas?

Carla Alexandra Gonçalves disse...

O seu comentário exige uma aula de iconografia e, também, de estética e teoria da arte, entre outros âmbitos… que, por razões presas com o espaço, e com o carácter deste blog, não terá aqui lugar.
Concreta e muito rapidamente, as causas que refere no seu comentário interligam-se com outros tantos assuntos que, ainda assim, não podem miscigenar-se com rapidez, mas vou tentar elencá-los:
1.º a iconografia da Virgem;
2.º a função das imagens;
3.º o uso das imagens em determinado contexto histórico e espacial;
4.º a simbologia (e as suas cambiantes ao longo da história das imagens);
5.º as leituras de uma obra de arte no decurso do seu tempo de existência, e nos tempos posteriores;
6.º o processo de encomenda;
7.º As teorias de decoro no decurso da Idade Média;
7.º as teorias de decoro a partir do meado do século XVI e os processos da Reforma e Contra-Reforma;
8.º a possibilidade de realização de trabalhos no âmbito da psicanálise, e isoladamente, a autores vivos durante o século XVI;
9.º as teorias da resposta;
10.º a espiritualidade moderna (entendendo-se a época moderna entre o fim da idade média e o início da contemporaneidade);
11.º a utilização de gravuras como veiculo de influência para a realização de quadros (ou cenas) iconográficos…
Como vê, esta causa possui imensas ligações mas, muito rapidamente, posso dizer-lhe que os temas da lactação do Menino (e de Santos) foi muito corrente durante o período que refere e não possuía, creio eu, as intenções que descreve no seu comentário presas com a expressão, ou com a estimulação da libido. Aliás, a vida da Virgem e os passos da infância de Cristo reúnem vários capítulos que têm de ler-se noutro contexto, e não com o sentido que lhes dá. Recordemos os passos essenciais a que me refiro: a anunciação, a virgem da expectação (virgem do Ó), a visitação, o nascimento, as adorações, a lactação, a fuga para o Egipto, a circuncisão, etc… O facto do Filho de Deus tomar o Leite da Mãe terrena é muito substancial em termos de informação espiritual e simbólica e deve ler-se com este sentido de consubstanciação. É desde o início da Idade Média que arranca este tema profícuo que lança a Mãe de Cristo numa jornada mais chegada aos homens mas com um objectivo estritamente evangélico. Mas as leituras que o homem faz das obras de arte é variável e dependendte de várias coordenadas que, obviamente, possuem fortes ligações com o mundo interior de cada um, para além da sua conjuntura específica.
Chegados ao tempo dos ditames emanados de Trento, passa a ser, paulatinamente, inconcebível a representação da Virgem do Ó, por exemplo, mas, ainda assim, continuaram a gizar-se as lactações, pelo significado de incorporação, embora com um tóuns mais espiritual, ao invés de veementemente referidas ao leite que o seio veicula.
Em conclusão, sempre apressada, podemos dizer que a Virgem do Leite, quer as de Frei Carlos, quer as que se pintaram um pouco por toda a Europa de então, não foram obras concebidas com «funções lúbricas», mas evangélicas.

Este assunto pode, aliás, lançar-se aqui ao debate, que lhe parece?
tudo de Bom,
c.a.g.