terça-feira, outubro 16, 2007

Da orientação ou vocação para as artes II

O facto de um indivíduo possuir uma aptidão para as artes não quer significar que ele venha a tornar-se um artista, na verdadeira acepção da palavra. A aptidão para uma determinada tarefa ilustra apenas um cômputo de capacidades físicas e psicológicas que um sujeito possui para um desempenho e não, necessariamente, o dom de alma evangélico que o faz ultrapassar a mediania.

Mas o talento artístico tout court não possui, neste e em tantos outros contextos, características comensuráveis. O talento artístico ou se tem, ou não se tem. Pelo contrário, a maior parte dos sujeitos pode, desde que fisicamente apetrechados, aprender a bordar, a pintar, a esculpir, a fazer coisas aprazíveis, adequadas e muito correctas, mas «uma obra assim produzida jamais possuirá uma alma», como escreveu Kandisnsky em 1954. A actividade produtiva em causa traduz-se numa imitação que é, para o artista, semelhante àquela que empreendem os macacos: «Na aparência, os seus movimentos são iguais aos dos homens: o macaco senta-se, debruça-se sobre um livro, folheia-o com ar grave. Mas esta imitação não possui qualquer significado.» (Kandinsky, Do espiritual da arte, D. Quixote, Lisboa, 1998, p. 21).

Uma obra de arte irrestrita ou, se quisermos, aquela que lhe merece o nome, começa na Ideia dos poucos indivíduos que vêem o mundo com outras lentes, com outras formas, cores e medidas, com outros sons que são inaudíveis, ou inimagináveis para os restantes. Uma obra de arte total é a que defende a alma de toda a vulgaridade, vertendo-se e derramando-se numa generosa oferenda ao mundo. É que o artista abeira-se do mundo quando é suscitado por ele. Schumann verificou que a vocação do artista é projectar luz nas profundidades do coração humano. Neste caso, poucos são os que conseguem alcançar essa luz, manipulá-la e vertê-la, transfigurada em texto entendível e decifrável pelo entendimento dos que a recebem.

E que místico chamamento é este que procura e que consegue lançar-se no que de mais íntimo há no homem, que procura observar a vida para a dar a conhecer, que se rebusca em íntimos suores de dor, para fazer saltar para o mundo aquilo que entende ser como essencial ao crescimento da humanidade? Que chamamento é este que faz com que um determinado sujeito se revolva (ou se resolva?) noutro mundo, naquele que aparentemente não corresponde ao precipitar da economia, naquele que, à partida, parece não querer fazer girar o mundo... Que precipício é esse, tão deslumbrador, que arrasta civilizações inteiras, na busca de uma forma de representação simbólica que diga tudo. Que mecanismo misterioso é aquele que leva à escrita obsessiva e a duras penas, ou à composição musical, à necessidade de recriação do mundo através de gestos organizados e miméticos, dentro dos sons.

Sem comentários: