quinta-feira, outubro 25, 2007

da orientação ou vocação para as artes IV

Mas este efeito que a obra de arte tem o poder de provocar estende-se por vezes até ao próprio artista, que por tantas ocasiões se vê superado, quando a vê depois de feita. Não raras vezes pensa o criador que não foi ele que criou. Não raras vezes, o criador não sabe porque criou. Não raras vezes, o criador emociona-se com o produto da sua obra.

O território encantado da criação artística pertence apenas a alguns sujeitos que, instigados por uma quase mágica vontade, revolvem constantemente o mundo e revolvem-se em cada dia de trabalho criativo, por vezes tão penoso e doloroso (porque o trabalho do mundo pesa tão invisivelmente nos braços do autor), para se verterem e oferecerem ao mundo em corpo e em alma.

Esta dádiva do corpo ao mundo (Cf. Merleau-Ponty, O olho e o espírito, Vega, Lisboa, 1997) no trabalho artístico surge, afinal, por vocação ou por orientação, versus obrigação, educação, sistematização, compromisso familiar, etc.?

É do conhecimento do quotidiano que quando um sujeito que possui uma determinada aptidão vocacional que lhe escapa, levando-o depois a percorrer a vida por outros caminhos, acaba por sentir-se frustrado, desanimado e pouco produtivo. Neste caso, o facto de recorrer-se a um conselho de orientação de vida, ou de aptidão vocacional, cumpre um papel indesmentível no processo da procura de si. Mas o exclusivo da orientação vocacional não transforma o indivíduo, possibilitando-lhe apenas uma abertura de caminho de vida que estava submerso.

Então todos aqueles que produzem obras que se consideram artísticas, fá-lo-ão por vocação, ou porque foram orientados para esses exercícios? Esta questão coloca-se neste âmbito, como para todas as escolhas que os indivíduos fazem ao longo das suas vidas.

Porque escolhe um sujeito ser isto ou aquilo?
Existe, de facto, em determinados indivíduos, um marcado impulso para as artes e, nestes casos, qual será o incentivo para o saciamento deste impulso? É a criação artística um trabalho que se executa independentemente de quaisquer valores estético-artísticos, ou de êxito e de aplauso, ou de necessidade de compreender e de conquistar o mundo, ou de comunicação interior ou exterior?

É chegada a altura de falar sobre o papel da criatividade (entendida como capacidade de conceber produtos ou soluções originais), da imaginação (entendida como a capacidade de retenção do ausente), da fantasia (entendida como capacidade de reelaboração do real) neste envolvimento de vertigem para criação, seja ela artística ou não artística. De facto, a criatividade é comum a todos os homens, tratando-se de um fenómeno inerente a quase todos os mecanismos psíquicos do ser humano, desde o funcionamento perceptivo à elaboração criativa mais complexa. Todos os sujeitos sãos estão em constante actividade criativa, na medida da sua disponibilidade para entender, recriando e organizando os impulsos recebidos cerebralmente. Falar de criatividade é considerar, intrinsecamente, processos como o da inteligência, da imaginação, da sensibilidade, da selecção, da intuição, da memória, da motivação, etc. E falar de criatividade é falar de curiosidade, de talento para a procura do conhecimento do mundo, para a procura do eu e do outro, para a procura de tudo e, no seu mais elevado grau, de tudo quanto é surpreendente e novo. Neste processo de cognição alargada deve, então, reservar-se um espaço especial aos lugares da intuição [Aquilo a que habitualmente chamamos intuição é, numa referência a António Damásio (— O Erro de Descartes, Emoção, Razão e Cérebro Humano, Publ. Europa-América, 1995, p. 199), o «misterioso mecanismo através do qual chegamos à solução de um problema sem raciocinar»] e da curiosidade.

Um indivíduo criativo é um sujeito curioso e, por isso mesmo, que tende a buscar incessantemente o conhecimento manuseando, em concomitância, a intuição e o raciocínio. Curiosíssimos são todos os que demandam pelos terrenos da ciência elevada, como marcam os exemplos de génio de Newton ou de Einstein.

No caso específico do artista, sabemos tratar-se de um ser altamente curioso e acrescentado em sensibilidade, manuseando a intuição com inteira liberdade, e que revela preocupações acrescidas, porque as obras de arte encerram e explanam um verdadeiro sistema de valores (estéticos, históricos e artísticos, etc.).

A criatividade do artista, tal como a do cientista, também vai de encontro às lacunas da realidade ou seja, o artista procura conceber aquilo que falta ao mundo e que o completa. A criatividade do artista permite-lhe observar o mundo sem fronteiras (com um olhar do interior, ou com um terceiro olho, ou com um terceiro ouvido...), recolher o que nele há de mais sensível e consumir essa recolha que se mescla com os sabores da sua intuição, da sua emoção, da sua vida e do seu sistema de valores. No processo de materialização da Ideia (numa noção de visão, ou de filme interior), o artista usa de uma inteligência que lhe é específica, utilizando as técnicas de que dispõe para a realização da obra, exprimindo a sua imagem interior, que é única, porque ajustada ao seu sistema pessoal de conhecimento e de interpretação do real. A linguagem artística serve-se, então, da intuição e do raciocínio ao nível da expressão.

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