quarta-feira, janeiro 02, 2008

Sobre o estado da saúde




Ainda não há muito tempo escrevi sobre Herbert Marcuse e sobre as suas ideias magníficas no que respeita ao Estado do Bem-Estar. Na sua senda, e esta é a primeira e última vez que escrevo sobre este assunto, devo expelir o que sinto sobre a Lei Anti Tabaco e seus sequazes.

De facto, fumar faz mal. Não há volta a dar quanto a esse assunto. Quem começou a fumar, seja lá quando, ou como isso aconteceu, fez mal. Fez mal porque se enganou, pensando que fumaria quando bem lhe aprouvesse e que fumar não comandaria a sua vida. Enganámo-nos.

A nicotina vicia mais do que a cocaína, e quem cai nos seus engodos, fica preso. Eu fumo desde os 16 anos. Fiz mal. Parei depois de fumar, aquando das gravidezes e suas implicações ulteriores, porque quis e porque tinha um motivo veraz para largar o cigarro. Foi um processo quase automático, porque o stress que me provocava a espera pelo tempo para fumar os cinco cigarros admissíveis parecia não passar. Três anos depois de ter parado, fui recomeçando, pensando novamente que não ficaria agarrada ao hábito, mas fiquei. Acho que, no fundo, recomecei a fumar porque sou fumadora, dependente de químicos. Entendo-me correctamente como uma nicotinómana. A partir de então comecei a trabalhar melhor, comecei a melhorar o humor, e rapidamente voltei ao que era, aquando dos 20 cigarros fumados diariamente.

O Estado entende que deve melhorar a saúde dos seus cidadãos. E entende bem, enfim, se quisermos responsabilizar o Estado por tudo, se formos de facto os filhos do Estado, e se o Estado tiver poderes para viver a vida dos seus filhos como gente menor e à sua guarda. Sim, o mesmo Estado que cuida da desvalorização social, esse mesmo Estado que vira as costas à outra saúde, aos problemas reais relacionados com a promoção da saúde (pública) dos seus filhos: os hospitais, os centros de saúde, as instituiçõs que deveriam cuidar dos que não têm quem lhes trate da saúde. Tenho péssimas memórias dos hospitais a que tive de ir, ou onde estiveram os meus: os médicos são, salvo devidas excepções, de bradar aos céus, porque vestiram a bata de um funcionalismo público de terceira categoria em termos de decência profissional (o encolher de ombros devido à hora, ou ao dia impróprio, a incúria estarrecedora, a lástima no que concerne à sua própria educação... É tudo tão rudimentar que aflige pensar nisso mas, o pior, é que isso implica com a vida alheia, alheia à deles, embora); dos senhores enfermeiros há de quase tudo, desde que a vaidade assim os incentive... enfim... Numa palavra, quando alguém adoece, deus nos proteja, o melhor é ficar-se em casa, pois que a casa pode ser um lugar mais salubre do que um hospital. Ou então, caso tenhamos mesmo de abandonar o lar, porque há a necessidade de uma operação, por exemplo, devemos seguir a ideia do médico que nos diz: operaria aqui, mas o melhor é ser operada na clínica onde trabalho, porque há menos esperas e o ambiente é melhor.

Muito bem. Pensando que fumando posso incorrer numa série interminável de danos para a minha, e para a saúde dos demais, e pensado que posso até vir a necessitar de recorrer a um hospital por motivos tão fúteis como o fumo, vou optar por melhorar as minhas, e as outras condições de vida. A par do abandono do cigarro, abandonarei também outros hábitos pouco higiénicos, como por exemplo, as comidas fortes, os refogados puxados, os fritos, os doces e os salgados, as bebidas açucaradas, gaseificadas, alcoólicas, e vou optar por macrobióticos e por uma cozinha mais rica em àguas, em fibras e em algas. A par dessa higienização alimentar, cuidarei em fazer desporto de ar livre, enchendo meus pulmões, outrora negros, do ar cristalino que em Portugal se respira... (!, certo?) Vai ser bom.

E com o andar da vida, conseguirei, enfim, chegar à década dos oitenta, ou dos noventa e tais anos. Nessa altura, se não for antes, certamente padecerei de outros males, dos males dos que não fumam, mas que vão morrendo, como os demais. Nessa altura, se tudo correr pelo melhor, poderei estar entrevada, imobilizada, com dores, ou toldada pela demência, perfeitamente longe da vida que levava, mesmo sem fumar, sem comer mal, e praticando de tudo o que de bem traz a vida, porque as minhas células, inevitavelmente, pararam de realizar a sua reprodução natural, enfim... tudo pode acontecer a uma velha que não fuma, por isso, certamente, terá chegado a velha. Bom!... nesses dias que virão, necessitarei de ajuda para tudo, se não puder que alguém me injecte o tal líquido mortificante, que é contra natura. Os meus filhos, oh, os meus filhos, quero-os longe de mim. Quero-os a tratar dos filhos deles, se for o caso, ou das suas vidas jovens, que dão o trabalho que dão. Não quero os meus filhos comigo, porque estarei velha, e velha, se estiver zombi, quero-os fora de mim, para me lembrarem nova.

O que eu quero, ou melhor, o que eu exijo, é que o Estado do Bem Estar me dê o apoio que me prometera quando me delongou os anos de vida. Ele sim, tem de dar-me um lugar digno, limpo e arejado, cheio dos velhos da minha idade, um lugar onde possamos sentir-nos bem, porque vivemos anos demais. Nesse dia que virá, oh que magnífico, poderei acabar os meus tempos sossegada, a cargo do Estado que me dara um quarto com casa de banho preparada e limpa, com uma vista ampla, com atendimento personalizado, com música, com filmes, com biblioteca, com flores e ar puro para que eu possa viver até ao fim, no quarto branco que o Estado me prometera. Certamente que o Estado não vai entrar naquela mísera conversa do: oh, minha senhora, veja a lista de espera imensa neste lar comparticipado, tem de morrer primeiro; minha senhora, é com alegria que lhe escrevemos, informando que ha agora uma vaga, naquela instituição onde morreram duas idosas porque a gerência tinha maus figados com quem teimava em em portar-se mal; minha senhora, porque o lar onde esteve inscrita (pagando) durante anos, foi fechado por falta de condições de higiene, terá de aguentar por onde lhe for possível; minha senhora, tem de deixar a sua pensão, e um terço do salário dos seus filhos, se quiser comer todos os dias na casa de repouso que lhe oferecemos... e

Ainda Bem, que o Estado do Bem Estar pensa em tudo, e que neste admirável mundo saudável, podemos nunca adoecer (valendo-nos poupar-nos de uma infecção hospitalar, ou de um pontapé de um bêbado enquanto esperamos consulta), e podemos morrer num lugar de encantamento, entrevados, mas felizes.

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