terça-feira, julho 22, 2008

o ar fresco nos corredores da educação básica

No Despacho n.º 19308/2008 emitido pelo Ministério da Educação podem ler-se várias coisas interessantes relativamente à
(re)organização do currículo do Ensino Básico.

Li o artigo agora mesmo, sem que me tivesse demorado muito, e fiquei muito constrangida. Em primeiro lugar, verifiquei que os alunos têm vindo a necessitar, desde há um tempo para cá, daquilo que, na minha linguagem, é o mesmo que aulas suplementares, embora o Ministério titule este grupo de aulas como áreas curriculares não disciplinares (ACND), e que servem para «a melhoria da qualidade das aprendizagens». Bom, se de facto as escolas não conseguem, nos horários competentes, realizar um ensino que capacite o estudante, é evidente que se torna necessário um horário suplementar para que o aluno aprenda, efectivamente, aquilo que não assimilou no decurso do seu dia de trabalho! Mas este grupo de áreas não disciplinares que existem com o intuito expresso de melhorar a qualidade das aprendizagens é, para mim, algo estranho e assustador, porque se os docentes exercem a sua função capazmente, porque parte o Ministério da Educação do princípio que os estudantes ficaram mal ensinados? Será porque o Ministério, ele mesmo, veio promovendo esta conjuntura de fraca assimilação de conteúdos, ou de uma fraca qualidade de conteúdos, ou de esquiva dos estudantes à atenção requerida habitualmente, porque depois terão outra hipótese, passando a limpo as suas lições em aulas suplementares? Não entendo a lógica deste sistema que parece fragmentário! Pensará o Ministério da Educação que, com as turmas excessivas e abarrotadas de crianças que ele próprio promove, não conseguem as crianças aprender como seria desejável no seu horário de trabalho normal? Ou entende o Ministério que os nossos estudantes do Ensino Básico não estão habilitados para aprender no registo estrutural que lhes foi imposto? Ou pensará o Ministério que os docentes, tendo de acudir a tantas áreas de serviço na escola, não conseguem exercer as suas funções docentes com a conveniência requerida?
Do ponto de vista do estudante, estas três áreas curriculares não disciplinares funcionarão como espaços híbridos, que não são bem de aprendizagem e nem são bem de recreio, são uns lugares de limbo que podem ser atraentes, dependendo dos projectos que os docentes que lhes couberam criaram, com a sua imaginação e talento, para ocupar as três vertentes assim dispostas: área de projecto, estudo acompanhado e formação cívica. Estas três áreas devem ser «encaradas como instrumentos privilegiados do conselho de turma para promover a integração dos alunos, melhorar as aprendizagens e promover a educação para a cidadania.». Para mim, estas ACND são intrigantes. Do ponto de vista de um professor também o podem ser, porque a ele cabe pensar em estratégias correctas e válidas para o seu grupo de alunos, para que este assunto e este tempo que todos dispensam, valha a pena ser dispensado… Para isso, o professor precisa de tempo e de espaço, precisa de inventar, de criar, de projectar e de disposição para que, com estas áreas, possa desempenhar uma boa tarefa à sua comunidade. O certo é que esse professor, certamente não terá um tempo específico para preparar essas ACND correctamente, bastando-se ao que de mais rápido lhe possa ocorrer… Como as ACND não estão a carburar na justa medida da utopia do sistema, o Ministério delega nos Conselhos Executivos o mister de «desempenhar um papel essencial ao nível da formação, acompanhamento e valorização das práticas desenvolvidas.». Ora aqui está outro aspecto que, para mim, constitui outro mistério…
1.º o falhanço das ACND como grupo de disciplinas que devia promover a qualidade das aprendizagens que se traduz no seguinte: afinal, nem com aulas suplementares conseguem os nossos estudantes aprender!
2.º o falhanço das ACND promovem uma maior responsabilização dos Conselhos Executivos das Escolas?
Mais do que isto, por causa das ACND, e porque deve empreender-se uma reorganização curricular, na medida da excessiva disciplinarização do 2.º ciclo (o 5.º e o 6.º ano), pensa o Ministério uma solução, que, todavia, se legitima pela Lei de Bases do Sistema Educativo Português: um professor por área curricular.
E aqui começa outro problema, mas este começa apenas no próximo ano lectivo, para professores e, certamente, a médio prazo também para os alunos que na prática creio ser este: um professor de História cumula, certamente, a disciplina de Português. Rios de matérias correriam por este texto que não pretende ser exaustivo. O certo é que aqui começará um vasto problema que tem ligações perigosas com as habilitações dos docentes para o exercício de tantas e tamanhas artimanhas na educação.
Prosseguindo na leitura do documento que tenho vindo a referenciar, encontro que esta solução, que tem de implementar-se no próximo ano lectivo (daqui a pouco mais de um mês), determina a «necessidade de uma distribuição de serviço lectivo, ao nível da turma e da escola, de forma a permitir a redução do número de professores por turma, tendo em conta que o recrutamento dos docentes do 2.º ciclo se destina a uma determinada área curricular disciplinar. Esta organização deverá constituir um elemento facilitador do trabalho transversal [por imposição da transversalidade das ACND, pergunto eu?], favorável ao cumprimento do projecto curricular de turma como instrumento decisivo para a regulação das aprendizagens e para a organização da vida escolar.».
Não compreendi. Vou rever apressadamente, e por alto, o que sei da formação que um professor do 2.º ciclo deve possuir para que não seja necessário aos seus alunos a frequência das famigeradas aulas suplementares. Assim, creio que um licenciado, ou um mestre, na melhor das hipóteses, em História, não foi apetrechado, durante a sua formação académica, com os conhecimentos necessários para veicular instrução digna na disciplina de português sem o recurso a aulas suplementares (o estudo acompanhado entendido agora como explicações). Também creio desconhecer os níveis de transversalidade que o Ministério estabelece, ou seja, o que ele entende com correcção como áreas curriculares, facto que me limita o entendimento sobre as aptidões académicas que cada docente deve possuir. Com Bolonha, creio que daqui a um punhado de anos haja licenciados que conseguem, pela rama, ensinar português e geografia (até mesmo educação física, se jogar futebol com os amigos ao sábado, ficando assim apto a educar para o futebol, disciplina que não tardará a despontar, uma vez que já li passar a existir uma outra titulada educação para o consumo…), assim como matemática e a biologia (se nos curricula das faculdades de matemática começar a existir esta uc de opção com dois níveis…).
O corpo docente actual não está apto a ensinar com conveniência neste sistema de transversalidade, mas consegue, se fechar os olhos com força, dar a volta aos programas, e às cabeças dos pequenitos. E este fechar de olhos e o dar a volta aos programas não constituem problemas de monta, porque o próprio Ministério fechará os olhos, e com os enunciados futuros das provas globais, acabará por misturar assuntos que os estudantes devem ter interiorizado anos antes, valendo-lhes depois, numa grelha de critérios de correcção, esta miscigenação escura de coisas que não passam pelo ensino-aprendizagem, mas por outras coisas ainda mal escritas e mal definidas, que definharão os níveis de ensino até à mais perfeita aberração educativa, espelhada nos fracos recursos dos estudantes que se apressam a engrossar caudais no ensino superior. Que rede fabulosa!
Ao que parece, as ACND estão a falhar como programa, não conseguindo cumprir o objectivo para o qual foram gizadas, e que assim se escreve: a melhoria das aprendizagens. Neste sentido, passa um mesmo professor a leccionar mais do que uma disciplina…
Trata-se de um castigo para todos, professores e alunos, os dois grupos supostamente envolvidos no falhanço das ACND.
O diploma prossegue, estabelecendo que «ao longo do ensino básico, em área de projecto e em formação cívica [disciplinas que cabem, penso eu, a segunda ao director de turma e a primeira a outro grupo de docentes que inclui obrigatoriamente o mesmo director, entre outros?] devem ser desenvolvidas competências nos seguintes domínios:
a) Educação para a saúde e sexualidade […];
b) Educação ambiental;
c) Educação para o consumo;
d) Educação para a sustentabilidade;
e) Conhecimento do mundo do trabalho e das profissões e educação para o empreendedorismo;
f) Educação para os direitos humanos;
g) Educação para a igualdade de oportunidades;
h) Educação para a solidariedade;
i) Educação rodoviária;
j) Educação para os media;
k) Dimensão europeia da educação.».
Trata-se, enfim, de um grupo de conhecimentos que me provoca verdadeiro pasmo. De facto, vou passar a prezar mais os directores de turma que, para além das actividades docentes que deve exercer com o brio que lhe é devido, para além do serviço administrativo que lhe cabe, terá ainda de, nas suas horas vagas, e quando não estiver a preparar conteúdos e a corrigir trabalhos de casa, exercícios e demais funções, preparar projectos no âmbito destas atribuições supra-elencadas. Ao seu lado, trabalha outro docente que cumprirá novos horários, com várias disciplinas a cargo, todas elas agrupadas numa área curricular. Do outro lado, estão as crianças, que devem encarnar personagens desapoiadas, e que por isso necessitam, no ensino básico, de aprender noções de «dimensão europeia da educação», ou de «conhecimento do mundo do trabalho e das profissões e educação para o empreendedorismo», entre outras…, ficando naturalmente à míngua, no panorama dos seus direitos de aprender com qualidade sobre assuntos dimensionados à sua escala.
No decurso desta leitura não vi uma palavra que reclamasse a aquisição, por parte das nossas crianças, de competências no âmbito da expressão (plástica, dramática, musical, e outras) e do livre pensamento sustentado (porque não seguir exemplos limpos do ensino de noções de filosofia nos mais novos? será assim tão transtornante, na relação com a educação para o consumo ou para os media?)...


Segue-se um suspiro e uma pausa para reflectir na quantidade de palavras que não queria escrever sobre este assunto.

4 comentários:

batista disse...

mui bem dispostas as tuas colocações. conseguiste colocar em palavras algumas questões que por cá também ocorrem. grato, de coração.
deixo um abraço fraterno e a certeza de retornar.

Carla Alexandra Gonçalves disse...

Pois é Batista, Portugal e o Brasil são mesmo dois países irmãos... :)
Volta sempre,
c.a.g.

J. disse...

Ah! O tempo em que julguei que o meu destino era ensinar os outros e em que pensava algo simples sobre essa actividade influenciado pelas palavras do Agostinho da Silva ... Viva a burocracia, a papelada, a estatística, o professor ama-seca para todo o serviço ...

Carla Alexandra Gonçalves disse...

o destino do ensino-aprendizagem é este mesmo que começou a esboçar-se há pouco tempo: o professor transdisciplinar sem lugar certo, e o estudante que "aprende" o que um sistema utópico, mas ignorante, lhe impõe, e que é de tudo um pouco menos o básico. Não deve faltar muito tempo para ver que na escola primária as crianças, ainda sem saber escrever ou contar, aprendem a criar uma empresa num dia (alguém haverá ali por perto para lhes preencher os papéis). Caímos num engodo criado por uma estrutura que não conhece o seu lugar no mundo, atávica e sem imaginação. A juntar a isto, sabe-se que nesta conjuntura tudo tem de ser muito engraçado, sob pena do desinteresse das crianças. Certo é que mesmo nas Universidades têm de criar-se (segundo leio) sistemas dinâmicos e apelativos, talvez com cores e com bonecos, para que não haja tanto abandono escolar, porque as crianças que frequentam este nível de ensino, agora adolescentes em fim de linha, estão habituadas a coisas giras, senão perdem enveredam por outros caminhos... e o que é isto? é a fúria do presente. Portugal foi sempre muito bom a viver furiosamente o presente.