quarta-feira, julho 09, 2008

quando as páginas do meu diário saltam cá para fora a pedir ajuda a ninguém

Sou uma professora portuguesa e sou mãe de duas crianças.
O meu filho mais velho nasceu em 24 de Dezembro de 2002 e, 20 meses depois, coloquei-o num infantário de Coimbra. Nessa altura, a idade das crianças pequenas, na relação com as turmas de ingresso, regulava-se pelo ano civil de nascença e, por esse motivo, o meu filho teve de avançar, no ano lectivo seguinte, entrando na sala dos três anos enquanto ainda tinha apenas dois. Lembro-me de como fiquei assustada, mas não tive alternativa. Era assim que as coisas funcionavam e, com o tempo, eu e ele fomo-nos habituando e correu tudo muito bem.
Chegou depis, e com rapidez, a altura de abandonar o Jardim Infantil, e de inscrever o meu filho na Escola Primária, no passado mês de Março. Durante este ano lectivo, o Afonso aprendeu as letras e os números e está a sair-se lindamente, porque quer aprender, porque está orientado no sentido do seu ingresso na famosa Escola Primária, porque pedagogicamente e psicologicamente, este é o seu caminho natural, porque se preparou para este decurso ao longo destes últimos (e primeiros) anos da sua vida. Todas as semanas me pergunta quando chega o dia de ir para a Escola Primária, e eu repondo-lhe, agora com grande timidez, que irá depois das férias do Verão.
É que chegada a fins de Maio começo a ouvir que as crianças que completam os seis anos em Dezembro não estão abrangidas pelo sistema nacional de educação ou, por outras palavras, estão fora do regime de obrigatoriedade de ensino. Comecei então a ir à Escola. Ouvi na Escola que estava tudo bem, que haveria lugar para todas as crianças, incluindo o Afonso, mas que tinha de esperar uns dias, para obter certezas sobre o assunto que começou a enervar os pais que, como eu, têm os seus filhos na mesma situação. Soube, depois das primeiras diligências tomadas, que a Lei fora alterada, no que concerne às idades na relação com as turmas de ingresso, e que as crianças que completam a idade fora do ano lectivo (até 15 de Setembro) não são admitidas no regime de ensino obrigátório. Esta alteração da Lei, sem a constituição de um regime de transição para todos quantos estavam abrangidos pelo Decreto anterior, valeu o desaparecimento, do sistema de obrigatoriedade de ensino, de uma quantidade substancial de crianças portuguesas cuja alternativa é permanecerem nos seus Jardins Infantis, ou ingressar no sistema de ensino particular.
A poucos dias de Agosto, o meu filho está em terra de ninguém, no fim de uma lista de alunos que não cumprem os requisitos para a sua admissão na Escola, valendo ainda uma esperança: a abertura de uma quarta turma para a colocação de 20 futuros estudantes que estão do lado de fora das portas da Escola.
Não consigo, confessadamente, manter-me à tona da sanidade mínima, também porque tenho mais de 570 alunos agora para para avaliar, do primeiro ciclo de estudos do ensino superior, e mais 17 do segundo ciclo, porque estou esgotada, porque penso que Portugal é um país jactante, enchendo a boca com a educação e com o direito ao ensino, porque Portugal propagandeia o envio de professores e de livros dizendo promover, em países distantes do nosso, a educação com dignidade, porque em Portugal as guerras com o ensino começam antes dos nossos filhos serem admitidos nas suas primeiras escolas, porque desconheço o destino do Afonso para o ano lectivo que vem, porque não posso acreditar que o Estado transforme impunemente e de modo tão sinistramente silencioso, estas crianças em repetentes do Jardim Infantil, gorando as suas primeiras e tão tenras expectativas, porque convivo com a descrença, porque sei que estou a ser governada por crianças que, tivessem elas aprendido, não levariam Portugal com tanta pressa para o pior lugar da Europa…
Resta-me agora escolher uma de duas vias possíveis: ou desato a escrever cartas para a DREC, promovendo abaixo-assinados pungentes, e fazendo esperas a quem pode dizer-me para ter calma, ou pago a peso de ouro para que o Afonso não fique um ano à espera de «entrar na Escola Primária», acesso a que ele tem legítimo direito.
Claro que, tendo eu de acudir aos meus mais de 570 alunos do primeiro ciclo, em época de avaliações, e aos 17 gloriosos do segundo, também em época de avaliações, tendo eu de preparar o semestre seguinte, com prazos curtos e por entre os possíveis 10 dias de pausa para respirar durante o tórrido mês Agosto, não consigo fazer esperas a ninguém, nem tenho já engenho para escrever cartas formais com argumentos viciados para humildemente pedir para que o meu filho possa ingressar na sua tão esperada Escola Primária… Estou, como possivelmente tantos outro pais devem estar, instalada no cerne de um ataque de ânimos desavindos, e não consigo poupar os meus filhos aos meus apupos de mãe infernizada. O pior é que nesta altura do tempo, dizer que o desânimo, ou que a revolta, tomou conta de mim (ou de nós), não vale nada.
E no meio das avaliações, e do trabalho que mantenho com o brio do qual ainda posso orgulhar-me, sinto um torpor estranho e anestesiante, daqueles que sentem as pessoas que se sentem injustiçadas, daqueles que sentem as pessoas que, por mais que esbracejem, não conseguem agitar o ar. No sistema de ensino em Portugal, o Afonso não aparece, porque alguém decidiu mudar uma Lei à sua revelia, e a seu desfavor… e ele ainda só tem 5 anos!

8 comentários:

Anónimo disse...

Carla, o seu filho tem direito a frequentar a escola, provavelmente a escola não tinha vagas. Os mais novos são os últimos da lista.


Daniel

Carla Alexandra Gonçalves disse...

Sim Daniel, o meu filho tem esse direito, tal como os trinta e tal filhos remanescentes cujo aniversário ultrapassa o mês de Setembro que aí vem, e que ficam no limbo das pautas daquela escola específica... aliás, na altura das inscrições foi-me transmitido que a escola comportaria o meu filho, como resposta a uma dúvida de mãe novata nestes assuntos, e por isso sempre mais assustada... O facto é que as escolas em Coimbra estão, na sua grande maioria, a rebentar de alunos, e o que também é facto, é que estes últimos das listas estão, por agora, à espera que alguém faça por eles aquilo que eles ainda não podem fazer.
Obrigada
c.a.g.

Anónimo disse...

Olá, Carla

Leia, por favor, os links que se seguem
http://www.drelvt.min-edu.pt/drelofcirc/abrirofcirc.aspx?documentid=13
http://www.dren.min-edu.pt/OfCirc/2008/OfCirc_06_08.pdf
e que se referem a circulares, respectivamente, da Direcção Regional de Educação de Lisboa e Vale do Tejo e da Direcção Regional do Norte, com o assunto: “Ingresso Antecipado no 1º ciclo do Ensino Básico – Ano Lectivo 2008/09”. Em qualquer uma delas, se pode ler que o pedido de autorização só é necessário quando: “b) Se reportem a crianças que atinjam os 6 anos de idade, no ano civil seguinte àquele em que os respectivos Pais ou Encarregado de Educação pretendem o seu ingresso no 1º CEB;”.
Assim, se o seu filho tem 5 anos e faz 6 no dia 24 de Dezembro, ninguém pode criar, de acordo com a legislação, qualquer impedimento na matrícula. O problema só se colocaria se fizesse os 6 anos no ano civil seguinte, ou seja, a partir do dia 1 de Janeiro de 2009.
Deve, no entanto, ter havido um lapso porque, de acordo com a data de nascimento do seu filho, ele tem, neste momento, 4 anos e fará 5 apenas em Dezembro próximo. Se for este o caso, não sei se colocá-lo já no 1º ciclo do ensino básico (público ou privado) seria o mais indicado…
Continuação de um bom trabalho como profissional e como Mãe.

Carla Alexandra Gonçalves disse...

Olá...

Obrigada pela documentação que ainda não li (mas que lerei, claro).

De facto, ao escrever o post, e porque escrevo sem me ler, coloquei o ano do nascimento do meu segundo filho... obrigada pelo reparo(... já emendei...).

Horas volvidas, e no pós-turpor-de-ideias, fico a saber que, na realidade, não há vagas nas escolas públicas que possam interessar nesta cidade (pela proximidade com a zona de habitação ou lugar de trabalho, pela garantia de ums estrutura física consequente, etc...).

O que mais me atormentou foi este processo de morte lenta que eu e os demais pais fomos vivendo desde há meses para cá, porque a escola anunciou várias coisas durante este decurso que, se foi longo, também foi de esperança sistemática, levando-nos a acreditar que dali a dias tudo terminaria a bem...

Primeiro, a questão fundamental dizia apenas respeito às crianças com cinco anos... mesmo que fizessem os seis até ao fim do ano. Todavia, o saldo das várias reuniões com a direcção da escola era sempre positivo, e vinhamos sempre com a ideia de que tudo ia correr de feição, mais semana, menos semana. Aliás, dizia-se então, haveria o dia em que vários alunos optariam pelo particular, ampliando-se assim o espaço que estava mais do que preparado para acolher todas as inscrições do primeiro ano, assim no-lo disseram na escola. Semana após semana nos fomos questionando sobre o tal telefonema confirmativo que nunca mais chegava ... até ao dia em que saíram as famigeradas listas no pátio escolar, e a nota escrita ao lado, que discorria sobre a abertura de apenas três turmas para o primeiro ano (coisa estranha, para as 109 crianças assinaladas, contando com c. de duas dezenas que não completam os seis anos até setembro.

Na presença daquela lista, e avaliando todo o processo de renovados ânimos, assim tão depressa entornados nessa manhã (que foi ontem), e porque a direcção nos foi dizendo, agora áquele pai, depois a outra mãe, que fizéssemos pressão na DREC, que tudo se resolveria em dias... vi aquele filme negro a passar-me defronte do olhar já perdido na realidade que é a realidade do país... o ensino particular é a via, para quem pode dar-se a esse luxo, de ensino possível. Não sei o que vai ser das crianças assim que ficam de fora, não havendo vagas escolares. Não me cabe na cabeça que um doente que necessite de ficar num Hospital durante um tempo, seja enviado para casa, enfim, não me cabe na cabeça que o sistema não seja elástico! Porque é que só o regime particular é tão elástico? E porque é que eu tenho pago, ao longo dos meus anos no activo, com uma parte dos meus impostos, o ensino particular (caso coimbrão que li na imprensa local há um mês, pouco mais ou menos... e que nem procurei confirmação, com medo de assustar-me)?

De facto, não devia ter sido tão confiante no sistema, ou nas palavras dos funcionários da escola já que, quanto na devida altura procurei, na cidade, um infantário para o meu filho (o segundo entrou por causa do irmão), foi precisamente a mesma coisa até chegar ao dia em que já não aguentei mais. Esse primeiro choque com a realidade foi claríssimo: não há infantários públicos para os meus filhos! E nem sequer particulares, a dada altura! Como farão os outros pais, pensei então... como é que as pessoas podem trabalhar?

Mas entendi que esse problema tinha passado. Aliás, e como estava um tanto longe dos factos, pensei que havia espaço nas escolas em Coimbra, porque fecham outras tantas sem ninguém... Nunca pensei, todavia, que quem faz parte da gestão destas questões não programásse os espaços, e demais necessidades, de acordo com um pressuposto tão simples quanto isto: há anos de picos demográficos, e outros há em que a demografia decresce; há zonas residenciais que se desenvolvem grandementer, elevando o seu índice demográfico... são questões básicas e que devem prever-se com inevitável regularidade, ou estou errada?

hoje culpo-me por ter confiado demais, ou porque, por inércia, e também porque o meu tempo não dá para tudo, ter-me deixado ficar à espera.

Mais uma vez, muito obrigada pela sua atenção, e preocupação, e disponibilidade...

É bom, às tantas, fazer saltar as páginas do meu diário cá para fora, a pedir ajuda a alguém...

c.a.g

Anónimo disse...

Carla ,fui obrigada a inscrever a minha filha num infantário privado.Muitas vezes pergunto-me para que pago impostos !Agora ela frequenta uma escola primária pública mas quando entrar no 2º ciclo não sei se terei de novo de colocá-la no ensino privado .
Este país não investe naquilo que é realmente necessário e para obtermos algo temos sempre de lutar tanto !!!

Carla Alexandra Gonçalves disse...

Viva, ....

É verdade!e o pior é que nós não devíamos ter de preocupar-nos com a questão que coloca: para onde vai o nosso dinheiro? A nossa preocupação devia ser apenas esta: fazer o melhro que pudermos com a nossa vida privada, no sentido de melhorar a Vida global, porque outros, aqueles que nós sabemos, possuem o dever de governar aquilo que nos pedem em tributos intermináveis. Mas não. Temos, continuamente, de preocupar-nos com todos os aspectos da vida, por isso fazemos tudo sempre pela metade!
Eu não tenho nada contra o ensino privado, mas fui sempre educada no regime público, e dou o melhor de mim ao ensino público nacional, porque é a quem sirvo, com o meu trabalho. Mas de facto, e tenho de reconhecer isso agora que me envolvo directamente com os mais novos, a experiência dos diálogos que agora também vou encetando, por força do desespero, com o ensino privado para o primeiro ano de estudos do meu filho mais velho, deixam qualquer escola pública envergonahda... E muito honestamente me sinto envergonhada... e a vergonha que sinto elenca-se deste modo:
a) preferia não ter de recorrer ao ensino privado num país que supostamente defende a via pública e que o garante como um direito de qualidade;
b) porque defendo (passo a não defender com a mesma gana) o ensino público em todos os seus graus de escolaridade;
c) porque queria ver o meu filho integrado numa escola grande, com ar de escola grande, pública, cheia de crianças das mais variadas formas e feitios e não o posso fazer;
d) porque o sistema é enganador e porque ilude as pessoas que ainda sonham;
e) porque não posso mudar o mundo;
f) porque dou o braço a torcer...

E penso quantas crianças, pelo país fora, não verão os seus sonhos de criança (que são tão, ou mais válidos do que os nossos, que com as crianças devemos fazer uma equipa) deitados fora. É este horizonte de expectativas quebrado pelo Estado logo aos mais pequeninos, esses que ainda não sabem o que é o Estado, que nestes dias que passaram me causaram uma onda de indignação específica (e sublinho a palavra, porque a onda de indignação é, como todos sabemos, mais abrangente do que isto).

Oh como a cada dia que passa mais me sinto irmanada com os pensamentos de H. Marcuse (para referir apenas um nome) sobre o Estado!

Obrigada pelo seu testemunho e um abraço
c.a.g.

J. disse...

Diz onde e quando : faço esperas, reclamações, whatever ...

Pena não termos camiões para cortar estradas, abastecimentos e outras coisas. Infelizmente, muitas vezes, a lei só se aplica se uma pessoa reclamar e ameaçar.

J.

Carla Alexandra Gonçalves disse...

O fim da história:
merece a pena contar como hoje terminou esta história que levou tempo, e eu me levou a esta partilha pública incomum, porque as páginas deste meu diário não saltam cá para fora com esta facilidade…

Da Escola onde inscrevera o meu filho, lugar que acabou, de facto, por não conseguir acolher todas as crianças, partiu o encaminhamento dos alunos sobejantes para outros espaços escolares, com o antecedente telefonema questionando os encarregados de educação sobre a possibilidade dessa transferência. No meu caso particular, consegui ficar satisfeita.

Parece-me que afinal valeu a pena termos feito as esperas, termos escrito as cartas, termos provocado as reuniões, e o blog, às tantas, e, mais do que tudo, o facto destes pais terem participado activamente num processo todo ele cheio de esquinas que pareciam incontornáveis. E pelo direito ao ensino público nos levantámos, esperando agora que este caminho iniciado vá decorrendo com a calma que a estes assuntos importa.
Um abraço a todos,
c.