sexta-feira, maio 25, 2007

o valor da arte enquanto facto social III

Durante um comprido período da História, o contacto com obras de arte produzia efeitos estonteantes. Desde a mais terna Idade Média que, na arte sacra e religiosa, as representações piedosas acalentavam a alma do leitor que assim tendia a comportar-se convenientemente, porque mesmo os iletrados colhiam o ensinamento bíblico através das mais diversas formas de arte plástica: «É pintura viva escritura e doutrina dos indoutos, como diz Decreto [de Graciano], mas aos contemplativos e letrados é acrescentamento de saber.». Se o retrato visível correspondia ao de uma mulher virtuosa ou santa, os leitores eram levados a catapultar-se naquela casta dimensão. Durante toda a época moderna, era corrente estimular-se a existência de quadros ou de outras imagens moralizantes e educativas numa casa habitada por crianças. Por outro lado, o macabro e o diabólico exerceram sempre outro género de motivações. Veja-se a capacidade de inquietar os homens que possuíam os capitéis e tímpanos das igrejas e mosteiros medievais, plenos de efeitos infernais, e alertando os homens para a emergência da casa de Deus, protegida e limpa do paganismo, do pecado, e distantes da mundanidade aterradora e impura.

Na actualidade, crê-se que o contacto permanente com as obras de arte, sejam elas plásticas, musicais, teatrais, ou outras, alimenta o espírito dos seres humanos, dignificando-o, elevando-o na sensibilidade e na cultura. Estes efeitos edificantes e taumaturgos das obras de arte cristalizaram-se na história, como temos vindo sempre a assistir.

De onde provém esta aura de fábula mágica contida nas obras de arte? Tratar-se-á de uma magia veiculada pelo poder da representação e dependente da maestria e virtuosismo do artista ou executor? Pode entender-se como o fruto de uma estranha empatia existente entre o sujeito e o receptor que, por existir, capacita a projecção na obra ou, por outro lado, estará o nosso imaginário programado para envolver-se garantidamente com estas manifestações da criatividade e da habilidade humanas? Advirá esta atracção pela arte do facto de associar-se, muitas vezes, ao prazer estético? É a arte o sonho visível, materializado, mundo às avessas, sem espaço nem tempo como aquele em que se situa o comum dos mortais? Somos ou não somos todos artistas?

A relação mantida com as obras de arte plasma-se ainda hoje na incorporação e na libertação. Na incorporação do visível e do invisível, do mundo e da Ideia que antecede a criação do Outro mundo imaginado, que não possui realidade enquanto tal mas que subsiste para além dela. Como um efeito fisiológico, de alimentação espiritual, os homens acreditam que, através dos sentidos, como uma entrada da, e para a alma, vão filiar-se aqueles factos, ou artefactos. A liberdade da arte é a sua provocação última, é a extirpação do pecado e dos vícios, dos desejos, da ansiedade e é a liberdade de dizer-se abertamente o que não se quer dizer. É a libertação do cosmos: «Portanto, a realidade não é o que está diante de nós, mas o que está por detrás, no espaço virtual do espelho.». É a liberdade do trabalho como assunção de felicidade e de acabamento da obra da natureza, ou de Deus.

1 comentário:

Anónimo disse...

uma multiplicidade interminável de leituras na magia de a todos tocar..