terça-feira, maio 29, 2007

o valor da arte enquanto facto social IV

O que é hoje uma obra de arte? Despida da sua função mística, que caminhos alcançará? Qual é o papel do artista no mundo? É a obra de arte uma interpretação da natureza ou é o homem um intérprete das obras de arte que não se dizem? Qual é o valor do ícone e do objecto? Qual é o valor da arte enquanto facto social? Que compromisso existe ainda entre a expressão e a afectação ideológica?

Indagámos já alguns dos efeitos produzidos nos seres pelas reproduções do real convertido em obra, ou em imagem, mas resta-nos abordar que garantias merecem estes fenómenos do lado de lá da execução.

Como é sabido, só há relativamente pouco tempo a obra de arte ganhou viva autonomia enquanto acto de pura criação individual. Durante séculos, ela foi sempre a filha legítima da encomenda, um braço longo de indivíduos ou, mais consertadamente, de grupos sociais. O comprometimento com o artista era puramente prático, porque o encomendante não possuía a mestria, ou o ingénio de execução artística. Este ambiente da obra agrilhoada à encomenda não pode esquecer-se, sob pena do olvido da sua faculdade de extirpação de uma vontade colectiva.

Como comprovou Frederik Antal, a pintura florentina dos séculos XIV e XV ficou a dever-se não ao talento individual e desapegado dos pintores, mas antes ao intuito da encomenda levada a cabo pelas classes económicas e sociais dominantes: a alta burguesia comercial de Florença. A encomenda ditou os temas, os modos, os desenvolvimentos e até as cores das representações . As obras produzidas pelos grandes artistas foram (e, em certa medida, ainda são), antes de tudo o mais, os produtos estéticos e formais de uma ideologia de classe, a classe que domina o panorama político, económico e social do seu tempo, aquela que pode marcar a conjuntura porque é detentora dos meios de produção, aquela que tem de firmar-se com legitimidade de exercício, aquela que necessita de aliar ao poder uma certa forma de produção cultural. Neste contexto, a obra de arte surge como uma materialização de poder, como uma materialização ideológica ou, nas palavras de Hadjinicolaou, como uma ideologia imagética definida «não [como] um conjunto de representações matafóricas, mas, em sentido estrito, [como] uma combinação específica de elementos formais e temáticos da imagem através da qual os homens exprimem a maneira como vivem as suas relações com as suas condições de existência, combinação que constitui uma das formas particulares da ideologia global de uma classe.» . Neste e noutros sentidos, as fórmulas da arte pela arte perdem garantia de propósito. A arte é uma expressão das condições de existência ora crítica e denunciadora, ora de superação. Expressão de um grupo social, ou para um grupo social independentemente do seu número, porque pode tratar-se de uma arte de massas, para as massas ou de rebelião de massas...

É este empenho social que não pode apear-se da categoria da obra, seja artística ou anti-artística. Qualquer que seja o túmulo esculpido, ou o retrato de um sujeito, ou a plasticização de uma imagem sagrada, ou o levantamento de uma catedral, de um palácio, de um convento, ou a edificação de um bairro, ou a composição de um requiem; seja qual for a peça, mesmo a mais efémera explosão de inflamada pirotecnia, todas estas manifestações do engenho e do intelecto humano carregam, por detrás de si, um ónus de elocução indesmentível: o comprometimento social.

Durante séculos, foi o próprio encomendante quem estabeleceu a plasticização da sua efígie no túmulo pétreo, para que venha a subsistir na memória dos homens; o retrato do benemérito foi o próprio quem assim o quis. As imagens sagradas encomendadas pelos cabidos, pelas paróquias, ou outras fábricas, foram ditadas para que, na sua maioria, se pudessem ler. Surgiram, desde a longa Idade Média, no interior de retábulos, de arcarias resguardantes, recobrindo muros transmutados em livro sagrado e a rigorosos critérios de ensinança social: as imagens devem ser exemplificações colocadas diante das nossas mentes para refinar e orientar os sentidos, por forma a que as coisas imperceptíveis nos surjam ao intelecto como perceptíveis (S. Boaventura). As obras de arte sacra insinuaram-se, desde sempre, porque no homem há uma necessidade vital de preenchimento e de incorporação. Elas devem suprir a carência provocada pela invisibilidade de Deus (ou dos deuses) e de todos os seus mistérios.

Durante séculos a fio e até à contemporaneidade , o artista foi limitado a cumprir a missão de plasticização para que, através das suas obras, a sociedade pudesse ler as mensagens escritas pela tinta invisível do encomendante, ou da classe social que ele incorporava.

A sociedade sempre foi ditando, directa ou indirectamente, o fenómeno artístico e imagético e age segundo vários modos operativos, mas com uma unicidade de vontade explícita: porque se compromete, enquanto grupo de indivíduos racionais, com a perenização, com a escatologia, com o poder, com a memória, com o domínio, com o conhecimento, com a encenação, com a tautologia, com as ideologias, com a cultura, etc..

Resta ainda questionarmo-nos acerca das obras que não conheceram outro ditame que não tenha sido a vontade de criação individual. Ao longo da história da produção de imagens, também existiram outros artistas que laboraram individualmente, ou seja, sem qualquer relação com um querer de encomenda prévia. Essas obras possuem ou não alguma relação com o tecido social? Que disposições cumprirão, para além da extirpação da imaginação criadora? O que valeu a essa plêiade de homens, o privilégio da autonomia?

A obra de arte é uma libertação da Ideia, como entidade intelectual que dá conteúdo à forma. É no fulcro dessa Ideia que devem procurar-se as intenções do artista e/ou do encomendante, para cada caso concreto. Qualquer que seja a obra de arte plástica, mesmo aquela que assume texturas abstractas de não-figuração, possui uma finalidade que deve entender-se como uma afinação ou, por outro lado, com um rompimento crítico e revolucionário com a realidade.
De entre as múltiplas categorias de operatividade, devemos entender o artista como um homem que trabalha, como um membro activo da, e na sociedade, como um sujeito que “está sujeito”, como mais um componente neste elenco da vida e do quotidiano da humanidade. Constituindo um elemento da e na sociedade, o artista revive-se nela ou rebela-se contra ela, ou aliena-se, numa disposição suicidária relativamente ao todo do qual faz, intrinsecamente, parte. Assim é a sua exportação plasticizada. O empenhamento do artista revive-se no próprio trabalho que pratica num contexto que é sempre político e social, já que se comprovou que o seu ofício é tão doloroso como o de qualquer outra actividade laboral — apesar de mais libertadora do que outros destinos de rotina como o trabalho fabril. A produção (artística) de imagens apoia-se na consubstanciação, ou no distanciamento crítico relativamente ao todo de suporte e alicerce multiforme que é a mundanidade.

A sociedade também precisa do artista liberto da encomenda do passado, precisa do artista de vanguarda, da arte nova e dialéctica, para sustentar-se enquanto sociedade mutante. O artista sem os grilhões atávicos da encomenda estrita não se descomprometeu, mas envolveu-se cada vez mais. As obras pessoais e personalizadas funcionam como demonstrações de uma intelectualidade única e crítica que não pode desaproveitar-se, sob pena de uma alienação social agonizante. Por forma a que uma sociedade, entendida no cômputo geral das suas possibilidades estruturais, possa evoluir, ela tem de entender-se e de criticar-se de uma forma ampla e revivificante. O papel da arte, neste contexto, é tão inevitável quanto fundamental, e a busca da verdade na arte consubstancia-se neste entorno, como a desocultação do ser (no mundo) criativo.

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