quarta-feira, maio 23, 2007

o valor da arte enquanto facto social II

A função da arte é, por tantos motivos, magnânima. E na discussão da intencionalidade funcional da arte, abrem-se novas possibilidades de indagação teórica. Theodor Adorno, entre outros tantos pensadores contemporâneos, avaliou a incompatibilidade da arte com quaisquer pressupostos funcionalistas. O esteta equacionou o facto de uma obra poder distinguir-se em grau de carácter, ou seja, assumir-se como sendo artística, ou não-artística, na medida do seu afastamento relativamente a qualquer tipo de função . Esta indagação verificou-se depois na sua redutibilidade, na medida em que o carácter de uma obra tem também de avaliar-se na medida da sua evolução histórica.

Considerando o trabalho arquitectónico como sendo um laboro artístico, temos de o avaliar também através do nível de funcionalidade criada, de adaptabilidade, de ergonomia, de exequibilidade prática, na mesma medida da sua predisposição estética e ideológica. Estima-se como útil a possibilidade de fruição de uma obra de arte seja ela qual for. Nesta questão da arte pela arte, deve anotar-se que a ausência deliberada de funcionalismo também colhe méritos espirituais e psicológicos de conveniência comprovada e, por isso mesmo, arrola um determinado nível funcional . A arte enquanto tal, mesmo na sua concepção mais abstracta e filosófica, detém utilidade, uma função e uma aplicabilidade que não podem desmentir-se, sob pena do esquecimento do Ser, na razão da essencialidade última da existência humana, sob pena do olvido da própria arte, apagada no seu desemprego como unidade que é provida de sentido e de significado.

Um objecto artístico tem necessariamente de ser incomodativo, de apelar aos estímulos e à razão, à nossa capacidade de envolvimento e de alterabilidade. Esta é a função e a entidade da obra de arte e é por isso que ela nos provoca sentimentos de repúdio ou de amor, de horror e de deleite, de aprazimento ou de desprezo. Ou ela tem esta capacidade, ou deixa de o ser, enquanto obra de arte. A composição pela composição, isenta de qualquer significado individual e social, desamarrada do pensamento programático que a deveria animar, dispensada de uma Ideia inicial, ou da «condensação simbólica da experiência», não deve determinar índice de qualificação artística, mas antes outras disposições praxísticas singulares. Não conseguimos, como assegurou Dino Formaggio, criar signos sem significado.

Relegamos desta exposição o valor da emoção, da sublimação, da libertação catártica, da libertação imaginosa e de outros conteúdos do discurso psicológico, para que nos possamos centrar no alcance da necessidade da arte, na sua urgência vertiginosa, na sua envolvência perene com a entidade humana, na sua imbricação com os meios de socialização.

Como é sabido, o primeiro e imediato carecimento do homem é aquele que se liga com os constrangimentos puramente fisiológicos, de manutenção e subsistência. Aliada a esta carência primária, o homem acumula uma outra que opera em concomitância constante: a necessidade de conhecimento. Trata-se de uma exigência que determina, ou não, o grau de humanidade do ser. Paralelamente a estas carências, e interligada com elas, surge a necessidade do homem posicionar-se no mundo na sua interioridade e exterioridade. O convívio humano com o macrocosmos é violento e esmagador e é através da necessidade de compreensão e de recolocação do homem no mundo que ele busca urgentemente um saber cada vez mais total, porque mais dominador e, por isso mesmo, supressor de ansiedade. O poder de alcance e de acção de superação sobre o real tornou o homem primitivo no moderno, e estabeleceu fronteiras entre a reacção inconsciente a um estímulo e a agilidade da razão.

Consciente da sua vulnerabilidade, da permanência efémera no mundo e convicto da sua corporalidade perecível, o homem desenvolveu outras possibilidades de ligação com o cosmo, por forma a dar-se a si alguma extensão no tempo e no espaço, alcançando-se então e definitivamente a dimensão mágico-religiosa da existência. A libertação do tempo e da perecibilidade construiu-se a partir deste constrangimento dos seres. A ideia de nascimento e de morte, o medo da convivência com a dor, a turbulência e a surpresa da natureza e do quotidiano e outros factores exasperantes, causaram no homem a nova necessidade de perenização.

De entre as várias formas de perenizar-se, o homem conjurou uma outra que, por envolver-se com a racionalidade, condiciona a humanidade e distancia-a ainda mais das restantes entidades mundanais. A “invenção da arte” surge também neste contexto, como uma prática mágica de Eterno Retorno, como um mecanismo de subordinação da realidade que se reproduz e re-inaugura, como uma sublimação do real que se transforma, como uma ponte entre o existir e o perecer, entre a vida e o que está para lá da morte. A invenção da Arte é a conquista da abertura do indivíduo, do grupo, do mundo e para a eternidade, numa comunhão cósmica de criação.

Surge a Arte como um novo mecanismo de incorporação da realidade, como uma eucaristia efectiva entre o Ser e o resto da existência física e metafísica. No acto da (re)criação material, o homem subordina o mundo inteiro depois de o ter incorporado. Esta ideia de produção artística como incorporação mágica e simbólica do mundo tem ainda de medir-se em concomitância com outros valores de ordem moral, espiritual, psicológica e social.

Regressemos ao tema da produção de imagens como medida de âmbito social e testemunhal. Não restam dúvidas quanto ao valor da peça artística, ou não artística, enquanto construção histórica, como fenómeno testemunhal, de eternização individual ou de um grupo ; quanto ao valor de emblemática de poder cristalizado no tempo; quanto ao valor de conservação e de reprodução de momentos, de ideologias, de crenças e de outras Ideias mais ou menos fundamentais que pretendem expelir-se, defender-se, ou manter-se para além do existir. Esta característica de efeito reminiscente que possui a maioria das obras de arte, é conseguida através da materialização de imagens com ditados iconológicos de proveito e de sustento.

São inúmeros os efeitos secundários produzidos pelas imagens. De entre eles colhem-se as combinações excêntricas, comprometidas com a alteração psicológica que produzem no espectador. No contacto com o estímulo percepcionado, a resposta produzida pela consciência pode explorar indizíveis caminhos de compreensão e de determinação comportamental. Foi conforme a esta potência imagética, conhecida desde a Antiguidade, que teóricos perenizados pela historiografia, opinaram sobre o bom uso das imagens.

A utilidade da pintura e da escultura, enquanto formas de apreciação visual, foi alvo de inúmeros textos de abonação. Leia-se, por exemplo, o efeito provocado por um bom quadro pintado, num excerto da obra de Lomazzo, o Trattato dell’arte della pittura, scultura, et architettura, publicado em Milão em 1584: um bom quadro «fará com que o espectador fique pasmado, quando vê o assombro pintado nele, que deseje a bela jovem por esposa, quando a vê pintada nua; que se sinta solidário, quando vê a aflição; sinta apetite, quando vê comer ricos manjares; que fique dormindo, perante a vista de um palácio de sonho; que se emocione ao contemplar uma batalha vivamente descrita e se agite, cheio de ódio e ira, ao ver acções vergonhosas e desonestas.». Esta ideia moderna que qualifica a obra de arte redunda na deliberação contemporânea, no exemplo de Ortega y Gasset quando quer explicar o que é a «arte artística»: o receptor diz que «é “boa” a obra quando esta consegue produzir a quantidade de ilusão necessária para que as personagens imaginativas valham como pessoas vivas. [...] E denominará arte ao conjunto de meios pelos quais lhe é proporcionado esse contacto com coisas humanas interessantes».

Esta virtude das imagens no geral, e da arte em particular, acciona-se porque interage com a capacidade de incorporação promovida por aquele que desde há séculos se manteve como o mais caro sentido humano: a visão.

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