terça-feira, maio 22, 2007

o valor da arte enquanto facto social I

Qual é a origem das obras de arte? Serão elas o fruto incondicional de uma emoção criativa, desabrida e desvinculada de qualquer sentido mais ou menos objectivo, ou de outra enformação, ou serão filhas de uma necessidade consciente da sociedade — enquanto estrutura inclusa e coesa, enquanto um todo formado por partes — que elas próprias transportam na sua essência, que elas reflectem, que elas incorporam, que elas ajudam a transformar, como entidades e agentes intelectuais?

Numa altura em que continuam a discutir-se abertamente as balizas de identidade do fenómeno artístico, numa época em que o enfoque das metodologias críticas e analíticas é constantemente revisitado, à luz de um saber cada vez mais totalizante, crítico e empenhado numa sustentada e abrangente visão dos objectos — artísticos e não-artísticos — e das suas possíveis relações com o homem e com a história, é ainda possível, tanto quanto urgente num ambiente de pesquisa multidisciplinar, o levantamento sistemático de questões metódicas que nos possibilitem um alvitre consertado com os novos caminhos de investigação.

Na procura de destinos de parceria entre a arte, a memória e a sociedade, várias portas têm de abrir-se com indispensável aperto. Logo ao primeiro entorno, é necessário buscar-se um sentido, uma função, um critério de identidade e de significação deste amplo e prolixo fenómeno, intimamente relacionado com a motivação, com a imaginação, com a libertação em catarse, com a criatividade, com o conhecimento, com a subjectividade e espiritualidade, com a simbologia, com a sublimação, com a ruptura e a inovação revolucionárias e, numa palavra, com a memória, enquanto recorte de fixação imagética e ideológica, indispensável no processo de sedimentação cultural das sociedades.

Antes de outras possibilidades de discurso, que são em número inimaginável, escrutinemos as balizas da produção de imagens, na medida em que parte delas constituem, de facto, obras de arte, enquanto outras estacionam num patamar limitado de carácter. Pergunta-se, ainda hoje, quais são os critérios de garantia artística de uma obra. Em que medida achamos a verdade de uma obra de arte? Quando pode garantir-se a imortalidade de uma, ou de outra obra? Qual é o atributo que vincula uma obra, ao mundo da Arte enquanto interpretação do real, ou como mimese, ou como mundo-outro de magia e desvinculação do território da realidade, ou de empenhamento crítico e com uma finalidade prática?

Mantém a Arte uma necessária relação com o Belo? A existir, como tem esta intimidade sido alterada no, e com, o tempo? A contemplação valoriza o Belo em detrimento da composição sígnica da obra?

Abreviadamente, o que distingue um objecto estritamente funcional de um outro acrescentado do valor de fruição estética? Podem ou não coincidir esses dois aspectos de processo sintético numa mesma estrutura formal? É a obra de arte uma coisa, ou é a arte uma ideia abstracta apensa ao carácter coisal do objecto? A arte é ou não uma potência sensível?

Em primeiro lugar, sabe-se que independentemente da categoria artística de uma determinada obra ela é, necessariamente, uma produção que possui uma inabalável relação com o ambiente humano. Uma obra de arte só o é, se for uma concepção da, e para a humanidade enquanto tal, se mantiver um carácter de objectivação , de sociabilização mais ou menos comunicativa, se possuir uma funcionalidade social, se constituir uma potência libertadora (do homem e do conhecimento), reveladora, revolucionária e deve trespassar a realidade, para a verter em obra . Só é Arte o que se põe em obra, como julgou Heidegger (1936) quando nos disse que: «Na obra, acontece esta abertura, a saber, a desocultação, ou seja, a verdade do ente. Na obra de arte, a verdade do ente pôs-se em obra, na obra. A arte é o pôr-se-em-obra da verdade» .

Esta relação da obra com a arte consuma-se em vários aspectos: por um lado, a obra de arte surge como um processo de desocultação do ente (do Ser em si), como uma abertura do homem essencial que se objectiva (materialmente) nas formas produzidas na obra que contém a verdade do absoluto de Si, que é a autenticidade ; por outro lado, deve levantar-se o véu do sentido verdadeiro do ente. O homem é ser e é ente e, para além dele, existem outros entes no, do e para o mundo, com espaço e duração próprios. A arte deve ser a desocultação do ser do ente e deve pôr a verdade em acção .

Resta agora a questão que diz respeito ao processo de criação artística enquanto condição de materialização (apensa à técnica de fabricação), ou de imaginação projectual ligado intimamente à realização humana, actuante e racional, e distanciado, por isso mesmo, da natura enquanto tal que é o ambiente que envolve a própria produção . A necessidade da arte é outro fruto da capacidade do homem projectar, destruir, reagrupar, refazer e ordenar. No caminho da vivência humana acha-se esta vertigem de afeição pelo novo. O homem gerou, ao longo da sua história enquanto ser no mundo, vários caminhos de sustentação num ambiente ininterrupto de descoberta e, de entre eles, destacam-se a arte e a ciência, unidos num propósito de comunhão e ligados através de um cordão vital pleno de seiva.

A necessidade de diminuição do grau de entropia no mundo abriu o caminho desejado da arte. Entre a ordem e a desordem, o homem instiga no trilho de encontrar um possível equilíbrio entre os sentidos e da razão. Neste precipício da lógica, o percurso histórico do homem também se enlaça com a carência da afabilidade. A procura da benignidade, a par da regra e da norma, rasga uma porta que se vai abrindo ao encontro com o belo.

E que relação deve possuir a arte com a beleza? O grau de empenhamento artístico é variável na razão da beleza? O caos da natureza também é belo, para os homens, desde que se comprometa com a serenidade, com a delicadeza, com a agradabilidade, com a paz, com a utilidade e com a vida. A beleza afecta-nos a sensibilidade, provoca-nos exaltação e induz-nos ao deleite contemplativo e a arte eleva-nos ainda mais, para além do Belo enquanto valor absoluto, do belo natural e da beleza da aparência criada. Numa obra de arte total, os valores expelidos não procuram o enlevo prazenteiro, no sentido da correcção estética, mas outro comprometimento cognitivo que pode arrastar consigo, como consequência da objectivação, um resultado esteticamente agradável. Um exemplo deste paradigma traduz-se radicalmente na anti-arte (e na ausência de representação, de figurativismo, de processos tradicionais de materialização, de canonicidade normativa, etc.) contemporânea que não nega a artisticidade, nem recusa o grau de empenhamento social que possui, inevitavelmente, como facto artístico. A afectação que provoca a produção artística ultrapassa o terreno da sensibilidade estética (e por isso uma obra de arte nunca pode agradar a todos com a mesma intensidade), para provocar novas emoções relacionadas com o intelecto, com a intuição e, pelo mesmo efeito, com a memória.

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