Nem todos os indivíduos possuem a capacidade de ver o mundo nas suas entrelinhas, de procurar nele aquilo que não há. Nem todos os sujeitos se desdobram em curiosidade inexcedível, e nem todos conseguem transformar as suas imagens interiores em expressão artística. Não se trata aqui de domínio da técnica, no seu entendimento mais amplo mas, antes de tudo, de aptidão para o voo, de aptidão para o domínio do sonho, de aptidão para o descobrimento da natureza e do Homem, de aptidão para o domínio do Ser na sua essência.
No decurso do processo criativo, não há dúvida de que o artista tem de conseguir deixar de lado o poder abrasivo da razão, para dar asas à intuição e à sensibilidade, entendidas como matrizes de laboração imprescindíveis. Veja-se o exemplo que um pintor que, ao enfrentar o branco, o preenche com uma série de pontos, de linhas e de formas que, paulatinamente, vão dando corpo ao desenho que materializa a imagem que o autor pretende conceber. Neste movimento de materialização —ou, se quisermos, de objectivação dos conteúdos subjectivos—, cada linha também vai determinando o caminho das que se lhe seguem, podendo alterar substancialmente a configuração primeira que, por vezes, chega a exceder a ideia inicial do autor. Um plano de obra ideado não é o seu resultado final e, não raras vezes, a própria obra altera-se durante o seu processo de natural desenvolvimento. É que a forma pode criar novas formas, recriar a própria imagem interior do artista, e dar-se como outra e completamente nova configuração.
Ninguém sabe o que leva o artista a escolher determinado caminho de execução em detrimento das incomensuráveis possibilidades de escolha, ou seja, ninguém pode explicar as opções que o artista toma, no decurso da sua criação, ou da explanação de determinada Ideia, que tem de encorpar-se para dar-se a conhecer. Neste processo, que lugar ocupará o acaso, como fonte ininterrupta de sugestões e de caminhos? Sabe-se que o processo criativo carrega em si (e sobre si) inúmeras hesitações, avanços e recuos e, também por este motivo, um constante desatino e ansiedade que, por sua vez, fazem avançar o discurso que se realiza.
Nesta sequência vertiginosa, por vezes tão distante de qualquer discernimento lógico, caberá apenas ao autor saber qual será a sequência de trabalho adequada, ou caberá à própria pintura saber que lugar ocupará a nova tinta? Competirá apenas ao artista entender quando deve terminar a sua obra, ou dir-lhe-á a obra que se resolveu, assumindo-se na sua totalidade? O que sabemos é que cumpre ao pintor escolher, mais ou menos racionalmente, emotivamente, impulsivamente, ou intuitivamente, o ritmo e a velocidade das suas impressões, o peso da mão a marcar o texto, ou a espessura das camadas de tinta. E que mistério é este senão o verdadeiro caminho da intuição em plena liberdade de acção, onde o diálogo entre a criação e o criador consubstancia um lugar incomum.
Um indivíduo criativo é, como já se disse, um indivíduo curioso, e esta curiosidade vai alimentar-lhe a criatividade, gerando-se assim uma espiral ininterrupta de causas e de efeitos. Será por isso que o artista —entendido como um ser realmente excepcional e único, dotado de um talento evangélico para a visão global da realidade, ou de um talento evangélico para as artes—, é um ser permanentemente insatisfeito, tocando a genialidade à custa de uma interminável inquietação interior?
Tendencialmente, ao inibir-se a curiosidade numa criança, espartilha-se a sua liberdade de procura de si e do mundo, limitando-se o desenvolvimento do seu
impulso epistemológico. Este impedimento, para além de corromper a tendência da criança para o conhecimento, também lhe tolhe a criatividade artística e científica. O livre exercício da curiosidade é, também, e neste caso, o livre exercício da criatividade.
Orientar um sujeito para as artes é, então, estimular-lhe desde cedo o exercício da curiosidade e da criatividade? É estimular o sujeito para o desembaraço cerebral na construção de imagens —entendendo-se aqui o conceito imagem como um filme cerebral ou, como uma ressonância interior do indivíduo? É sabido que esta estimulação gera, necessariamente, uma grande desenvoltura epistemológica, e que pode
facilitar o caminho para o desenvolvimento criativo, na sua concepção mais abrangente mas, todavia, não pode comprovar-se que esta estimulação resulte em ganhos efectivos no terreno da vocação para a realização de obras de arte na verdadeira acepção da palavra.
Sabe-se que, justamente, os homens não são todos iguais em capacidades, em impulsos, em aptidões, em tendências e em gostos. Cada indivíduo é um depositário determinado desde o seu primeiro dia uterino, consubstanciando-se como um único ser biológico que depois, desenvolvendo-se em determinado contexto conjuntural, vai adquirindo outras e tão múltiplas características que mais ainda o fazem divergir do restante emolumento psicossocial.
As aptidões e as capacidades, na sua significação mais ampla, variam de indivíduo para indivíduo. São determinantes que vão condicionar as suas reacções a estímulos, as suas actividades, as suas carências, o seu comportamento e até mesmo o seu sistema de valores, as emoções, a produtividade, etc.. Mas a existência de uma aptidão para a música, por exemplo, não faz do indivíduo um compositor emérito, podendo fazer dele um músico, se lhe estimularmos, através do ensino da música e do exercício, essa mesma capacidade. À aptidão deste indivíduo, devem então juntar-se a aprendizagem e a sistematização, ou o exercício, mas, ainda assim, ninguém garante que este músico consiga compor, ou produzir obras de arte inexcedíveis. A avaliação da estrutura e das capacidades dos indivíduos pode levar-nos a predizer sobre os seus comportamentos futuros e sobre a possibilidade de aquisição de determinadas habilidades. Mas, ainda assim, ficamos sem saber como surgem as habilidades nos homens. Certamente que por condicionalismos externos e por condicionalismos genéticos mas não podemos discernir, com facilidade, até que ponto somos mais determinados pelas condições ambientais, ou por factores estritamente imanentes.
Numa justa conclusão, devemos dizer que apenas sabemos que as capacidades individuais constituem o resultado de uma combinação inter-relacional de factores inatos e ambientais que se misturam sem grande rigor matemático.
Dizer que um artista se faz não nos basta, porque julgamos que um artista não se faz do nada. Far-se-á ele se lhe faltar aquilo que o pode distinguir em género e em aptidão, em raciocínio, em intuição, em compreensão do espaço, em visão do mundo, em necessidade de completar o real e em consciência? E como podemos nós, do nada, fazer o pão? É que apesar de comummente ser defendido que o filho de um peixe possui qualidades que o fazem saber nadar, nem sempre é garantido que esse descendente consiga abraçar os oceanos, ondular eficazmente até ao termo da idade, podendo morrer pela boca, ou viajar apenas em pequenos rios, ou tender a embaraçar-se nas ardilosas redes que o esperam.