sexta-feira, novembro 23, 2007

da orientação ou vocação para as artes VI

Como historiadora, podia arrolar comprovadas famílias de artistas, apontar nomes e obras, de pais com filhos arquitectos, escultores, pintores e músicos, para depois verificar como a orientação e a herança genética dos criadores foi magnânima no processo de carreira individual dos descendentes. De facto existiram, e ainda existem, inúmeras famílias de artistas. E que quer isto significar? Que este género de aptidão circula nos genes dos indivíduos, ou que o ambiente familiar determinou a vocação em esteira para as artes? Poderemos nós conjecturar que a laboração nas artes surgiu num determinado jovem porque a família o coagiu a enveredar por esse caminho de vida através da estimulação de determinadas capacidades?

Sabe-se que existe uma grande correlação entre os factores ambientais e sociais, e a hereditariedade, pelo menos ao nível de influência no coeficiente de inteligência e no comportamento, entre outras áreas mas, e ao nível do desenvolvimento da capacidade para produção de obras de arte?

A historiografia da arte desenvolve, se bem que desanexada dos propósitos objectivos da psicologia, uma metodologia que pode ajudar-nos nesta apreciação já que, de uma forma geral, quando pretende fazer-se a biografia de um artista, procuram-se os motivos para o desenvolvimento das aptidões artísticas verificadas no indivíduo em apreço. Pesquisam-se primeiramente os parentes mais chegados, recuando-se depois, se necessário for, a gerações anteriores. Procuram conhecer-se as actividades, a cultura, o meio económico e social e as inclinações desses sujeitos, de forma a entender-se mais capazmente esse agente de cultura em causa. Mas o historiador não pesquisa estas fontes para demonstrar as componentes genéticas do artista, fazendo-o, em parte, por aferição subjectiva, e por outro lado para integrar o sujeito num lugar e num espaço sociocultural enformante, que também é o seu lugar na história.

Numa considerável amostra de sujeitos pesquisados ao longo dos vários séculos precedentes, conclui-se que, de facto, o artista biografado possuía pelo menos um parente com demonstrada tendência para as artes —sem que, todavia, esse parente tenha, necessariamente, de possuir inegáveis talentos artísticos [este fenómeno da esteira familiar de artistas compromete-se, em determinadas conjunturas históricas, com motivos de razão prática e social, mais do que com processos estritamente biológicos, ou psicológicos. Durante a Idade Moderna, era comum que o filho, ou que um apaniguado, seguisse o ofício já enraizado no seu núcleo social mais chegado por comprometimento económico e social. Exemplos radicais como os que podem verificar-se para a época moderna portuguesa dos arquitectos Arruda, da extensa família artística dos Frias, dos parentes Diogo Pires-o-Velho e o-Moço, da família Ruão, etc., não constituem excepção, e fazem parte de um largo cômputo extensível no tempo e no espaço, porque este fenómeno verificou-se um pouco por toda a Europa coeva].

Mas se encontramos infinitas esteiras de descendência artística, também conhecemos outros tantos casos que nos permitem duvidar que estamos perante uma regra: o famosíssimo pintor renascentista Piero della Francesca era filho de um sapateiro, e Botticelli de um curtidor de peles.

Vasari, um artista e teórico das artes da Itália quinhentista escreveu, na sua Vida dos Pintores, publicada em 1550, que o mestre de Giotto, chamado Cimabue, era oriundo de uma nobre família florentina. O seu pai enviara-o a um frade seu parente que ensinava noviços em Santa Maria Novella, mas o jovem Cimabue interessou-se mais pelo trabalho dos artistas que ali pintavam na capela dos Gondi, abandonando o estudo para passar o dia inteiro a ver labutar os referidos pintores, pelo que seu pai, bem como os ditos pintores, verificando que ele tinha aptidões para a pintura, acabou por ceder à sua vocação, tendo Cimabue, ajudado pela sua natureza muito inclinada para a arte, ultrapassado muitíssimo o estilo da sua época. Outro caso conhecido é o do próprio Giotto que, sendo pastor, pintava ovelhas muito ao natural nas pedras dos pastos da Toscana, em Vespignano, tornando-se depois num dos mais famosos artistas do gótico italiano.

Apesar de tudo, a historiografia da arte também permite concluir que de facto existe uma forte aclimatação fraternal que influencia grandemente o desenvolvimento das aptidões futuras de um, ou de outro artista de maior ou menor fortuna. Podemos imaginar o exemplo, comum ao longo da história, do pequeno filho nascido de uma família de lavradores e colocado, ainda muito jovem, na oficina de um artista para aprender o ofício, no cumprimento de uma aspiração paterna que queria ver o filho vingar, social e economicamente, no mundo arredado da lavoura.

Durante um largo período da história, esta metodologia de ensino e de ingresso no mundo das artes era radical, já que desde a Idade Média mais longínqua até ao dealbar da contemporaneidade, nalguns lugares da Europa recenseada, a criança era literalmente posta em casa do seu mestre, raras vezes era visitada pelo pai ou por outro parente, e ficava em permanente contacto com as lides familiares e artísticas do seu mestre, contactando com as obras em produção, ou com os modelos e com livros de ensinança e com o grupo de encomendantes e de mecenas. A criança era afastada do ambiente familiar original e era, certamente, muito influenciada pelo novo mundo do seu mestre, alterando-lhe, de certa forma, grande parte das motivações primeiras e do seu comportamento. Não obstante, e independentemente da fortuna deste jovem aprendiz, não podemos contabilizar o seu grau de aptidão inicial e posterior para o desempenho da arte.

Num exemplo mais concreto temos o caso, muito divulgado pela da especulação romântica, que gravita em torno da origem do talento de Miguel Ângelo Buonarroti. Discute-se enormemente sobre a sua educação, sobre o facto de ter sido colocado, ainda menino, num lar situado nas cercanias de uma enorme pedreira, e sob a guarda de um canteiro, facto que lhe terá desenvolvido o gosto pela roca, o gosto pela descoberta das formas ocultas nas pedrarias, o gosto pelo pó da pedra e aquela visão do mundo sui generis, que foi a deste magnífico e inigualável homem das artes. Aliás, o próprio Miguel Ângelo pronunciou-se sobre esta afortunada marca de vida quando, em conversa com Vasari, lhe confessou que se tivesse sido criado noutro lugar, longe do pó da pedra alva, que para ele era tão vital como o leite de sua ama, nunca teria enveredado pela escultura...

Ora, se ao invés da sua educação em casa da ama, Miguel Ângelo tivesse sido acompanhado pela sua família de classe média e burocrata da Toscana renascentista, como teria ele desenvolvido aquela apetência tremenda pela escultura? Aliás, para a família Buonarroti, o desempenho as artes, que então eram entendidas como manuais, constituía uma desonra vergonhosa.

Qual foi então o papel do seu ingénium pessoal, ou da orientação, promovida no convívio de nascença com a pedra, no contacto com Domenico Ghirlandaio ou com Granacci, seus primeiros e superadíssimos mestres, no processo do desenvolvimento do seu talento? Muitos biógrafos de Miguel Ângelo acreditam apenas no seu auto-didatismo, estendendo-se o seu talento evangélico no contacto fecundo com as obras de arte, e com a filosofia da casa de acolhimento durante o final da infância e no dealbar da adolescência, na corte dos poderosos Medici.

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