quarta-feira, novembro 14, 2007

que vergonha



Jacques de Gleyn o Velho, Vanitas, 1603 (cf. www.metmuseum.org)



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o Museu Nacional de Arte Antiga e o Nacional de Arqueologia encerram salas de exposições por falta de pessoal vigilante (cf. nótícia)... certamente seguir-se-ão outros e, certamente, outras falhas podem fazer colapsar um sistema que já é débil, e que se debate em lutas (por estas e por outras, mas sempre por falta daquilo que faz mover os mundos...) de forma a conseguir manter-se de pé. num só pé, diria.

este não é o único problema com se altercam os grandes, e os menos grandes museus portugueses. também não é um problema exclusivo da rede de museus nacional, mas trata-se de uma questão mais abrangente, porque envolve a teia imensa dos bens patrimoniais imóveis, bem como os recheios móveis, praticamente todos por inventariar. se abrirmos bem os nossos olhos conseguimos ver que as paróquias, as capelas, os mosteiros e os conventos que povoam os nosso país se escondem, e escondem os seus tesouros feitos também de esculturas e de pinturas guardadas, porque abrindo-os, podem perde-los de vista. e se num dia ainda temos a sorte de poder admirar uma esculturinha devocional pousada há anos numa peanha algures no interior de uma capela de porta aberta, no dia seguinte ela desprendeu-se do lugar e eclipsou-se. por isso quem vem a portugal, ao país velhíssimo da beira europeia voltada ao mar, para visitar o seu vasto património religioso não pode entrar, ficando-se à beira das portas fechadas às sete chaves.

de facto, este país cuidou sempre pouco do seu legado cultural e, especialmente, da sua tão rica herança patrimonial. os poucos cidadãos que deram, e os que ainda dão, porque ainda os há, as suas vidas por esta causa desmerecida constituem-se como uma casta quase delirante, entendida como um bando de alienígenas que pouco fazem pelo progresso. e esbracejam sem poder fazer mover os ares.

os dias que correm deveriam até ser diferentes, depois da unesco ter considerado em portugal, e por escrito, que as artes e o património são valores imprescindíveis para a construção de cidadãos de facto, e de corpo inteiro, aliciando ao estudo para a sua compreensão e valorização, com consequente preservação. mas estas directivas levaram à abertura de novas licenciaturas em artes, e no seu estudo generalizado, sem ser medida a justa entrega desses novos formados à realidade.

às vezes chego mesmo a sentir vergonha por ter nascido no meio deste canto terráqueo. as situações inacreditáveis a que assisitimos nesta aresta quebrada do mundo espelham um conformismo tão indolente que chega a ser arrepiante, e que é altamente desmotivador. e o que arrepia ainda mais é mesmo este estado de espírito de desapego pela memória. trata-se de uma memória selectiva, a nossa, ainda presa aos grandes feitos, mas que desdenha do material que remanesce, o material vivo e sólido que marca e que testemunha vidas, e que morre em outras vidas se não tratarmos dele. o que portugal preserva são algumas estórias de homens magníficos há muito desaparecidos, das imensas e complexas teias familiares que povoam a nossa história, gosta ainda muito das tramas políticas que se geraram, ou que se degeneraram, dos feitos esventrando mares, e de guerras mais ou menos afortunadas, coisas de encher os olhos quando não querem ver. mas ao mesmo tempo, portugal desdenha subtilmente o que esses e outros homens construíram de mais pequeno em tamanhos. afinal, vivemos a mesma agonia cultural, embora com renovadas formas, a que estivemos sujeitos durante anos, reclamando tempos novos de liberdade e de democracia.

afinal, esta eresta do mundo que acaba a europa para encontrar os altos mares, não é um lugar de fascínios e de paixões, porque se faz de homens ásperos e indiferentes e tão cheios de soberba. reina neste velho pedação de chão um desamor tão agreste que faz saltar dos olhos, daqueles tais poucos sujeitos, delirantes, os que esbracejam sem conseguir fazer mover os ares, uma quieta e silenciosa gota de água insalubre, porque eles sabem que não é o fumo que comanda a vida.

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