terça-feira, novembro 06, 2007

da orientação ou vocação para as artes V

Nem todos os indivíduos possuem a capacidade de ver o mundo nas suas entrelinhas, de procurar nele aquilo que não há. Nem todos os sujeitos se desdobram em curiosidade inexcedível, e nem todos conseguem transformar as suas imagens interiores em expressão artística. Não se trata aqui de domínio da técnica, no seu entendimento mais amplo mas, antes de tudo, de aptidão para o voo, de aptidão para o domínio do sonho, de aptidão para o descobrimento da natureza e do Homem, de aptidão para o domínio do Ser na sua essência.

No decurso do processo criativo, não há dúvida de que o artista tem de conseguir deixar de lado o poder abrasivo da razão, para dar asas à intuição e à sensibilidade, entendidas como matrizes de laboração imprescindíveis. Veja-se o exemplo que um pintor que, ao enfrentar o branco, o preenche com uma série de pontos, de linhas e de formas que, paulatinamente, vão dando corpo ao desenho que materializa a imagem que o autor pretende conceber. Neste movimento de materialização —ou, se quisermos, de objectivação dos conteúdos subjectivos—, cada linha também vai determinando o caminho das que se lhe seguem, podendo alterar substancialmente a configuração primeira que, por vezes, chega a exceder a ideia inicial do autor. Um plano de obra ideado não é o seu resultado final e, não raras vezes, a própria obra altera-se durante o seu processo de natural desenvolvimento. É que a forma pode criar novas formas, recriar a própria imagem interior do artista, e dar-se como outra e completamente nova configuração.

Ninguém sabe o que leva o artista a escolher determinado caminho de execução em detrimento das incomensuráveis possibilidades de escolha, ou seja, ninguém pode explicar as opções que o artista toma, no decurso da sua criação, ou da explanação de determinada Ideia, que tem de encorpar-se para dar-se a conhecer. Neste processo, que lugar ocupará o acaso, como fonte ininterrupta de sugestões e de caminhos? Sabe-se que o processo criativo carrega em si (e sobre si) inúmeras hesitações, avanços e recuos e, também por este motivo, um constante desatino e ansiedade que, por sua vez, fazem avançar o discurso que se realiza.

Nesta sequência vertiginosa, por vezes tão distante de qualquer discernimento lógico, caberá apenas ao autor saber qual será a sequência de trabalho adequada, ou caberá à própria pintura saber que lugar ocupará a nova tinta? Competirá apenas ao artista entender quando deve terminar a sua obra, ou dir-lhe-á a obra que se resolveu, assumindo-se na sua totalidade? O que sabemos é que cumpre ao pintor escolher, mais ou menos racionalmente, emotivamente, impulsivamente, ou intuitivamente, o ritmo e a velocidade das suas impressões, o peso da mão a marcar o texto, ou a espessura das camadas de tinta. E que mistério é este senão o verdadeiro caminho da intuição em plena liberdade de acção, onde o diálogo entre a criação e o criador consubstancia um lugar incomum.

Um indivíduo criativo é, como já se disse, um indivíduo curioso, e esta curiosidade vai alimentar-lhe a criatividade, gerando-se assim uma espiral ininterrupta de causas e de efeitos. Será por isso que o artista —entendido como um ser realmente excepcional e único, dotado de um talento evangélico para a visão global da realidade, ou de um talento evangélico para as artes—, é um ser permanentemente insatisfeito, tocando a genialidade à custa de uma interminável inquietação interior?

Tendencialmente, ao inibir-se a curiosidade numa criança, espartilha-se a sua liberdade de procura de si e do mundo, limitando-se o desenvolvimento do seu impulso epistemológico. Este impedimento, para além de corromper a tendência da criança para o conhecimento, também lhe tolhe a criatividade artística e científica. O livre exercício da curiosidade é, também, e neste caso, o livre exercício da criatividade.

Orientar um sujeito para as artes é, então, estimular-lhe desde cedo o exercício da curiosidade e da criatividade? É estimular o sujeito para o desembaraço cerebral na construção de imagens —entendendo-se aqui o conceito imagem como um filme cerebral ou, como uma ressonância interior do indivíduo? É sabido que esta estimulação gera, necessariamente, uma grande desenvoltura epistemológica, e que pode facilitar o caminho para o desenvolvimento criativo, na sua concepção mais abrangente mas, todavia, não pode comprovar-se que esta estimulação resulte em ganhos efectivos no terreno da vocação para a realização de obras de arte na verdadeira acepção da palavra.

Sabe-se que, justamente, os homens não são todos iguais em capacidades, em impulsos, em aptidões, em tendências e em gostos. Cada indivíduo é um depositário determinado desde o seu primeiro dia uterino, consubstanciando-se como um único ser biológico que depois, desenvolvendo-se em determinado contexto conjuntural, vai adquirindo outras e tão múltiplas características que mais ainda o fazem divergir do restante emolumento psicossocial.

As aptidões e as capacidades, na sua significação mais ampla, variam de indivíduo para indivíduo. São determinantes que vão condicionar as suas reacções a estímulos, as suas actividades, as suas carências, o seu comportamento e até mesmo o seu sistema de valores, as emoções, a produtividade, etc.. Mas a existência de uma aptidão para a música, por exemplo, não faz do indivíduo um compositor emérito, podendo fazer dele um músico, se lhe estimularmos, através do ensino da música e do exercício, essa mesma capacidade. À aptidão deste indivíduo, devem então juntar-se a aprendizagem e a sistematização, ou o exercício, mas, ainda assim, ninguém garante que este músico consiga compor, ou produzir obras de arte inexcedíveis. A avaliação da estrutura e das capacidades dos indivíduos pode levar-nos a predizer sobre os seus comportamentos futuros e sobre a possibilidade de aquisição de determinadas habilidades. Mas, ainda assim, ficamos sem saber como surgem as habilidades nos homens. Certamente que por condicionalismos externos e por condicionalismos genéticos mas não podemos discernir, com facilidade, até que ponto somos mais determinados pelas condições ambientais, ou por factores estritamente imanentes.

Numa justa conclusão, devemos dizer que apenas sabemos que as capacidades individuais constituem o resultado de uma combinação inter-relacional de factores inatos e ambientais que se misturam sem grande rigor matemático.
Dizer que um artista se faz não nos basta, porque julgamos que um artista não se faz do nada. Far-se-á ele se lhe faltar aquilo que o pode distinguir em género e em aptidão, em raciocínio, em intuição, em compreensão do espaço, em visão do mundo, em necessidade de completar o real e em consciência? E como podemos nós, do nada, fazer o pão? É que apesar de comummente ser defendido que o filho de um peixe possui qualidades que o fazem saber nadar, nem sempre é garantido que esse descendente consiga abraçar os oceanos, ondular eficazmente até ao termo da idade, podendo morrer pela boca, ou viajar apenas em pequenos rios, ou tender a embaraçar-se nas ardilosas redes que o esperam.

2 comentários:

perplexo disse...

Em nenhum outro site encontrei esta temática, além disso tratada de forma magistral.
Uma das minhas dificuldades tem que ver com a minha rejeição da atitude e da opinião largamente disseminada de que a obra nasce (só) da intuição, pelo que se deve «desligar» a razão. Custa-me a crer que a obra não precise de uma grande fatia de programação.

Carla Alexandra Gonçalves disse...

Obrigada pela simpatia das suas palavras!

Este artigo esteve nos prelos de uma revista tanto tempo que decidi retirá-lo à editora e publicá-lo aqui, por capítulos, porque não queria tê-lo mais tempo na gaveta. Ainda bem que surtiu efeitos!

E sim, claro que o artista planeia a obra (e planeia-a de que maneira!) e sim, um plano rigoroso e trabalhado conduz a uma obra congénere… Mas os planos, tais como os métodos de trabalho são diferentes, e possuem pesos e medidas também diferentes, dependendo que cada prática artística. Evidentemente que um projecto arquitectónico (ou um sinfónico, entre outros), exige planos rigorosos e definitivos, mas na pintura (e também dependendo do espaço e do tempo ─ do contexto ─ de produção) os planos podem alterar-se à medida que o trabalho ganha vida própria, começando a falar por si. Mas este facto não invalida a necessidade de um projecto inicial, como é evidente. Estou a lembrar-me, assim rapidamente, do trabalho de um escultor quinhentista que, para conceber a sua obra definitiva, estabeleceu um método de trabalho morosíssimo, começando pelo debuxo, passando pelo modelo em ponto pequeno (maquete), pela reprodução do modelo a ponto definitivo usando de uma série de procedimentos pré-estabelecidos.

Um escritor, a menos que cumpra outros projectos de escrita, também delineia o seu plano de obra, que provém, como nos restantes artistas, da sua ideia interior (e este conceito de Ideia interior é importante discernir com as devidas flexibilidades…) que se projecta, fazendo-a sair de si… enfim… a concepção romântica do artista que produz mediante um estado de alienação, ou abraçado a esquemas translunares de encontros com o belo de formas incandescentes está, também actualmente, muito «fora de moda»!

Todavia, o papel da intuição, na prossecução criativa é importantíssimo. Aliás, mesmo aquando da produção científica, devemos atender largamente aos nossos horizontes intuitivos!

Tanto na nossa vida se faz mediante esta faculdade algo ignota mas que nos encaminha constantemente. Devemos saber escutar a nossa intuição, essa forma de vida alumiada e estranha que nos silêncio das noites nos conduz ao dia. Devemos conseguir escutar o nosso senso íntimo, que é tão importante na elaboração de um trabalho (artístico ou não artístico), porque através deles avaliamos o que estamos a realizar, porque através dele nos decidimos, quanto a caminhos, quanto a pausas, quanto a fechar a obra que empreendemos. É aqui, na orientação do trabalho, que nos devemos ouvir por dentro, dando largas à nossa natureza intuitiva.

Mas esta necessidade de dar viva voz à nossa faculdade intuitiva não desmerece o papel da lógica e do raciocínio porque desapegada, ela não funciona, apagando-se como uma vela sem torcida.

Afinal, a intuição também nos conduz noutros processos durante a vida, relacionados sempre com o saber, tais como: o conhecimento que temos do mundo, dos outros, do outro que nos apoquenta dentro de nós (ou seja, nós mesmos no mundo); a intuição promove determinados processos de empatia; permite-nos fazer associações e conjecturas, procurando soluções para os problemas (que podem ser os nossos problemas diários); permite-nos o uso da nossa imaginação com alguma liberdade; a intuição trabalha com a criatividade; a intuição trabalha neste imenso e incandescente mundo interior da sensibilidade…

Somos o que somos porque possuímos esta aptidão, ou danação, que é, numa palavra, a nossa intuição. Ela abre portas desconhecidas e fecha outras …

Mas o processo criativo é também, e claro que sim, um processo racional e intelectual. Nem durante a Idade Média, quando as artes ainda não eram Arte, se supunha que a produção de obras não passasse pela cognição, pelo aprendizado, pela experiência, e pelo domínio das técnicas.

O que está em causa neste artigo é também o assunto relacionado com o talento e, neste caso, embora uma grande porção dos homens conheça os métodos, as técnicas e as demais práticas, só um brevíssimo punhado de gente possui as asas para voar por sobre o mundo, provocando nos demais as sensações únicas que a obra de arte tem a capacidade de produzir. Ao receber uma obra de arte, através dos sentidos que assim estremecem nesse encontro, recebemos o impacto vivo, vibrado pela primeira vez dentro, e no ardor daquele que a concebeu.

Trata-se de um processo de comunicação de ondas, com os seus efeitos, e para que consigamos produzir no outro as nossas ondas, temos de conhecer os caminhos assim, de forma racional.

Digo-lhe mais: este assunto é apaixonante.
Com um abraço
c.a.g.