segunda-feira, novembro 26, 2007

da orientação ou vocação para as artes VII

Nunca poderemos solver este mistério de artista genial. E nem o próprio criador conhecia a origem do seu engenho artístico desassossegando-se, não obstante, com essa sua característica de homem invulgar, facto que o levou à produção obsessiva de obras de arte inexcedíveis em qualidade. Na obra poética que nos legou, Miguel Ângelo demonstra esta sua preocupação, quando imagina ser a criação artística o fruto de um êxtase metafísico.

A especulação em torno da origem do génio artístico fascinou, de facto, imensos teóricos, ao longo da historiografia artística. Autores como Petrarca, Boccacio, Dante e, como vimos, o próprio Miguel Ângelo na Itália humanista, ou Francisco de Holanda, no Portugal de Quinhentos, entendiam a pintura como uma arte de origem divina e o pintor (como alter deus), pintando por divina força e imitando o homem à semelhança de Deus Eterno que foi, justamente, o primeiro pintor.

Durante muitos anos, particularmente durante e após o século XVI, os grandes artistas eram entendidos como uma espécie de santos, incarnando, nas suas obras e no seu próprio ser, a revelação divina. E esta visão do artista como fabricador de mundos não está, ainda hoje, longe dos nossos horizontes teóricos. Crê-se que o pintor possui uma capacidade para ver o mundo que está longe da nossa visão profana.

Já Francisco de Holanda entendia que o maior pintor não pinta aquilo que vê na natureza mas antes aquilo que vê com seus olhos interiores, aquilo que vê no seu entendimento solitário e quieto, aquilo que vê como uma aparição vinda do céu. Trata-se aqui de uma verdadeira teoria do génio, ou do pintor como um ser sagrado, descrita pelo próprio autor, numa (suposta) conversa com Miguel Ângelo e escrita em 1548: os de engenho já trazem do seu próprio trabalho, quando nascem, gosto e amor àquilo que são inclinados e que lhes pede seu génio [Francisco de Holanda, Diálogos de Roma, edição de José da Felicidade Alves, Livros Horizonte, Lisboa, 1984].

Trata-se aqui de uma visão neoplatónica e transcendentalista da criação artística que culminou na aberta classificação de alguns artistas como divinos (e nesta parentela de talentos evangélicos incluem-se o divino Miguel Ângelo, ou o divino Morales, na vizinha Espanha) mas que não está longe de alguns pressupostos que vieram a desenvolver-se, como a noção de alguns poderes inatos que criam no sujeito uma necessidade, ou uma inclinação para determinada tarefa cumprida através do génio.
Os estudos da psicologia e da sociologia abriram estes caminhos de verificação que se entendem como mais concertantes neste registo de pesquisa sobre a vocação ou orientação para as artes. Dos dotes transcendentais passaram então, e definitivamente, a aceitar-se outro género de factores, como o mundo das inclinações, ou das aptidões, ou das motivações que se inter-relacionam com o ambiente exterior enformante e que determinam uma solução mista entre a genética e o emolumento social.

Esta vontade de oferecer-se ao mundo não é comum a todos os indivíduos. Muitos há que querem, efectivamente, dar-se, expelir-se, explicar-se mas falta-lhes o que eles não conseguem encontrar na sua pesquisa de si e angustiam-se, frustram-se e fustigam-se, podendo depois enveredar por outro caminho de substituição. Mas outros indivíduos conseguem escapar a essa frustração dando lucidez às aptidões mais secretas e, mediante um árduo trabalho de sistematização, exercitando-se quase doentiamente, conseguem ultrapassar-se numa conquista do mundo e numa abertura efectiva de si, para o real. Resta depois outro cômputo de homens, feito daqueles que não sentem, nem nunca sentiram, qualquer necessidade de criação.

Numa desejada síntese, podemos então verificar existir uma vocação para as artes e uma vocação para a Arte no seu sentido mais absoluto e extremo. Qualquer uma dessas vocações, que possui uma origem marcadamente psicossocial, pode trabalhar-se ou, por outro lado, pode ficar encoberta no caminho da vida dos sujeitos que a possuem. Se essa vocação conseguir despertar no sujeito, ele deve sistematizar essa inclinação através do estudo e do exercício mas, por outro lado, ela pode existir, ou persistir silenciosa, apagada na vontade consciente de verter-se e tem, nessa altura, de procurar-se, na orientação, para dar-se a conhecer.

Não obstante todas estas sugestões, sem o constrangimento para completar-se o mundo e sem o talento para o voo por sobre os homens, não consegue fazer-se um artista.

Coimbra 3 de Maio de 2001.

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