terça-feira, janeiro 29, 2008

... I and II and III ...








...

foi há tanto tempo que quase me perdia.
mas afinal ainda lá estou.
e estou ainda aqui.
depois.



quinta-feira, janeiro 24, 2008

sem título






Porque mesmo não querendo continuamos sós
no adentro das nossas vidas
no adentro das ideias
no adentro de um estômago
que dói



e continuaremos sós
no adentro de nós mesmos
ainda que possamos pensar que,
mas só no adentro das ideias,
nos envolvemos prenhemente
com o mundo

segunda-feira, janeiro 14, 2008

Yeah

BREAK iN YOUR HEAD. SpOk23



Quando descobri este dj bretão chamado Spok23 fiquei algum tempo sem pensar noutra coisa, por isso decidi partilhar o que há de partilhável ...

Da TriBe Liveset By SpOk23

terça-feira, janeiro 08, 2008

segunda-feira, janeiro 07, 2008

a Nosso Senhor





Se eu, com a minha lâmina de veludo, tentasse arrancar-te esses teus olhos, para com eles conceber meu pendente de peito, sempre presente, chegaria ao céu, ao pé de ti, oh altíssimo, e contigo construiria um caminho desavesso, mas seria esse o caminho que contigo, sem teus olhos, porque já eles foram derramados no pendente do meu peito, percorreria aos brados, feitos com a minha voz de veludo, tentando cantar os sons que de minha boca não sairiam, porque a minha voz e a tua, que são uma voz junta, gritariam num mesmo silvo de céus ardentes que só os anjos, com seus cabelos brandos, apreenderiam. Se eu, com a minha lâmina de veludo, tentasse remoldar-me na vida, para com ela, toda nova e toda sã, conceber-me em pendentes de peito, sempre presentes, chegaria ao céu, ao teu largo, altíssimo, e contigo conviveria sem voz, porque as orações que proferiríamos, de tão iguais, se confundiriam. E essa minha mão de veludo te cercaria, e o mundo inteiro se verteria em nada, porque nele jamais me perderia.

quinta-feira, janeiro 03, 2008

porque de facto não aguento

decidi, apesar de ter jurado que não mais escreveria, ou sequer pensaria sobre este assunto que é, para mim, algo irritante, copiar, do documento enviado pelo Ministério da Saúde (consultável em www.dgs.pt, creio eu) referente à lei Anti Tabaco (titulado «Perguntas e respostas acerca da Lei 37/2007, de 14 de Agosto»), o elenco dos lugares onde não é permitido fumar, tais como alguns onde, em casos previstos, pode eventualmente fumar-se.

Recebi essa documentação no ano passado mas nem abri o link, empurrando o problema com a barriga. Mas agora decidi abrir o referido doc., talvez para compreender algumas questões que ainda não tinha visto explicadas ou, quem sabe, para me focar na realidade. Durante a leitura, arregalei tanto os olhos que não aguentei, resolvendo-me então a partilhar parte do interessante texto:

É então proibido fumar:
«1. Nos locais onde estejam instalados órgãos de soberania, serviços e organismos da administração pública e pessoas colectivas públicas;
2. Nos locais de trabalho;»

Nota rápida aos pontos 1. e 2.:
então em que ficamos?
onde é que nos é permitido trabalhar?

«3. Nos locais de atendimento directo ao público;
4. Nos estabelecimentos onde sejam prestados cuidados de saúde, e outros similares, laboratórios, farmácias e locais onde se dispensem medicamentos não sujeitos a receita médica;
5. Nos lares e outras instituições que acolham pessoas idosas ou com deficiência ou incapacidade;»

Nota rápida aos pontos 3., 4. e 5.:
nem a propósito!

«6. Nos locais destinados a menores de 18 anos;
7. Nos estabelecimentos de ensino, independentemente da idade dos alunos ;
8. Nos centros de formação profissional;
9. Nos museus, colecções visitáveis bibliotecas, salas de conferência, de leitura;
10. Nas salas e recintos de espectáculos e diversão;
11. Nas zonas fechadas das instalações desportivas;
12. Nos recintos das feiras e exposições;
13. Nos conjuntos e grandes superfícies comerciais e nos estabelecimentos comerciais de venda ao público;
14. Nos estabelecimentos hoteleiros;
15. Nos estabelecimentos de restauração, de bebidas ou de dança;
16. Nas cantinas, nos refeitórios e nos bares;
17. Nas áreas de serviço, postos de abastecimento de combustível;»

Nota rápida ao ponto 17.:
ainda bem que não podemos fumar cigarros nas áreas de serviço, porque ainda assim, é-nos permitido beber bebidas alcoólicas sem qualquer limitação.... (sem comentários).

«18. Nos aeroportos, nas estações ferroviárias, nas estações rodoviárias de passageiros e nas gares marítimas e fluviais;
19. Nas instalações de metropolitano;
20. Nos parques de estacionamento cobertos;
21. Nos elevadores, ascensores e similares;
22. Nas cabines telefónicas fechadas;
23. Nos recintos fechados das redes de levantamento automático de dinheiro;
24. Em qualquer outro lugar, onde por determinação da gerência, ou de outra qualquer legislação aplicável, designadamente em matéria de prevenção de riscos ocupacionais, se proíba fumar;
25. É ainda proibido fumar nos veículos afectos aos transportes públicos urbanos, suburbanos e interurbanos de passageiros, bem como nos transportes rodoviários, ferroviários, aéreos, marítimos e fluviais, nos serviços expressos, turísticos e de aluguer, nos táxis, ambulâncias, veículos de transporte de doentes e teleféricos.»

Bom, era de evitar tanta tinta para dizer-se apenas que é proibido fumar em toda a parte tirando a sua casa e tirando, muito provavelmente, as sentinas (ou as retretes públicas), que não se arrolam neste documento.

Nos lugares onde é permitido fumar-se relê-se:
«3. Pode ser permitido fumar em áreas expressamente previstas para o efeito:
3.1. Nos locais onde estejam instalados órgãos de soberania, serviços e organismos da administração pública e pessoas colectivas públicas;
3.2. Nos locais de trabalho;»

.... é de rir.

quarta-feira, janeiro 02, 2008

Stay Tune



from Anja Garbarek, nesta canção fabulosa, to Robert Wyatt, revista, and so on...

Sobre o estado da saúde




Ainda não há muito tempo escrevi sobre Herbert Marcuse e sobre as suas ideias magníficas no que respeita ao Estado do Bem-Estar. Na sua senda, e esta é a primeira e última vez que escrevo sobre este assunto, devo expelir o que sinto sobre a Lei Anti Tabaco e seus sequazes.

De facto, fumar faz mal. Não há volta a dar quanto a esse assunto. Quem começou a fumar, seja lá quando, ou como isso aconteceu, fez mal. Fez mal porque se enganou, pensando que fumaria quando bem lhe aprouvesse e que fumar não comandaria a sua vida. Enganámo-nos.

A nicotina vicia mais do que a cocaína, e quem cai nos seus engodos, fica preso. Eu fumo desde os 16 anos. Fiz mal. Parei depois de fumar, aquando das gravidezes e suas implicações ulteriores, porque quis e porque tinha um motivo veraz para largar o cigarro. Foi um processo quase automático, porque o stress que me provocava a espera pelo tempo para fumar os cinco cigarros admissíveis parecia não passar. Três anos depois de ter parado, fui recomeçando, pensando novamente que não ficaria agarrada ao hábito, mas fiquei. Acho que, no fundo, recomecei a fumar porque sou fumadora, dependente de químicos. Entendo-me correctamente como uma nicotinómana. A partir de então comecei a trabalhar melhor, comecei a melhorar o humor, e rapidamente voltei ao que era, aquando dos 20 cigarros fumados diariamente.

O Estado entende que deve melhorar a saúde dos seus cidadãos. E entende bem, enfim, se quisermos responsabilizar o Estado por tudo, se formos de facto os filhos do Estado, e se o Estado tiver poderes para viver a vida dos seus filhos como gente menor e à sua guarda. Sim, o mesmo Estado que cuida da desvalorização social, esse mesmo Estado que vira as costas à outra saúde, aos problemas reais relacionados com a promoção da saúde (pública) dos seus filhos: os hospitais, os centros de saúde, as instituiçõs que deveriam cuidar dos que não têm quem lhes trate da saúde. Tenho péssimas memórias dos hospitais a que tive de ir, ou onde estiveram os meus: os médicos são, salvo devidas excepções, de bradar aos céus, porque vestiram a bata de um funcionalismo público de terceira categoria em termos de decência profissional (o encolher de ombros devido à hora, ou ao dia impróprio, a incúria estarrecedora, a lástima no que concerne à sua própria educação... É tudo tão rudimentar que aflige pensar nisso mas, o pior, é que isso implica com a vida alheia, alheia à deles, embora); dos senhores enfermeiros há de quase tudo, desde que a vaidade assim os incentive... enfim... Numa palavra, quando alguém adoece, deus nos proteja, o melhor é ficar-se em casa, pois que a casa pode ser um lugar mais salubre do que um hospital. Ou então, caso tenhamos mesmo de abandonar o lar, porque há a necessidade de uma operação, por exemplo, devemos seguir a ideia do médico que nos diz: operaria aqui, mas o melhor é ser operada na clínica onde trabalho, porque há menos esperas e o ambiente é melhor.

Muito bem. Pensando que fumando posso incorrer numa série interminável de danos para a minha, e para a saúde dos demais, e pensado que posso até vir a necessitar de recorrer a um hospital por motivos tão fúteis como o fumo, vou optar por melhorar as minhas, e as outras condições de vida. A par do abandono do cigarro, abandonarei também outros hábitos pouco higiénicos, como por exemplo, as comidas fortes, os refogados puxados, os fritos, os doces e os salgados, as bebidas açucaradas, gaseificadas, alcoólicas, e vou optar por macrobióticos e por uma cozinha mais rica em àguas, em fibras e em algas. A par dessa higienização alimentar, cuidarei em fazer desporto de ar livre, enchendo meus pulmões, outrora negros, do ar cristalino que em Portugal se respira... (!, certo?) Vai ser bom.

E com o andar da vida, conseguirei, enfim, chegar à década dos oitenta, ou dos noventa e tais anos. Nessa altura, se não for antes, certamente padecerei de outros males, dos males dos que não fumam, mas que vão morrendo, como os demais. Nessa altura, se tudo correr pelo melhor, poderei estar entrevada, imobilizada, com dores, ou toldada pela demência, perfeitamente longe da vida que levava, mesmo sem fumar, sem comer mal, e praticando de tudo o que de bem traz a vida, porque as minhas células, inevitavelmente, pararam de realizar a sua reprodução natural, enfim... tudo pode acontecer a uma velha que não fuma, por isso, certamente, terá chegado a velha. Bom!... nesses dias que virão, necessitarei de ajuda para tudo, se não puder que alguém me injecte o tal líquido mortificante, que é contra natura. Os meus filhos, oh, os meus filhos, quero-os longe de mim. Quero-os a tratar dos filhos deles, se for o caso, ou das suas vidas jovens, que dão o trabalho que dão. Não quero os meus filhos comigo, porque estarei velha, e velha, se estiver zombi, quero-os fora de mim, para me lembrarem nova.

O que eu quero, ou melhor, o que eu exijo, é que o Estado do Bem Estar me dê o apoio que me prometera quando me delongou os anos de vida. Ele sim, tem de dar-me um lugar digno, limpo e arejado, cheio dos velhos da minha idade, um lugar onde possamos sentir-nos bem, porque vivemos anos demais. Nesse dia que virá, oh que magnífico, poderei acabar os meus tempos sossegada, a cargo do Estado que me dara um quarto com casa de banho preparada e limpa, com uma vista ampla, com atendimento personalizado, com música, com filmes, com biblioteca, com flores e ar puro para que eu possa viver até ao fim, no quarto branco que o Estado me prometera. Certamente que o Estado não vai entrar naquela mísera conversa do: oh, minha senhora, veja a lista de espera imensa neste lar comparticipado, tem de morrer primeiro; minha senhora, é com alegria que lhe escrevemos, informando que ha agora uma vaga, naquela instituição onde morreram duas idosas porque a gerência tinha maus figados com quem teimava em em portar-se mal; minha senhora, porque o lar onde esteve inscrita (pagando) durante anos, foi fechado por falta de condições de higiene, terá de aguentar por onde lhe for possível; minha senhora, tem de deixar a sua pensão, e um terço do salário dos seus filhos, se quiser comer todos os dias na casa de repouso que lhe oferecemos... e

Ainda Bem, que o Estado do Bem Estar pensa em tudo, e que neste admirável mundo saudável, podemos nunca adoecer (valendo-nos poupar-nos de uma infecção hospitalar, ou de um pontapé de um bêbado enquanto esperamos consulta), e podemos morrer num lugar de encantamento, entrevados, mas felizes.

sexta-feira, dezembro 21, 2007

da natividade

Não posso deixar de pensar, sem encontrar resposta para tal coisa, porque na natividade penso mais nos defuntos do que durante a época pascal.
Chego perto do Natal e penso tanto na falta que me fazem os que já partiram…, e na falta que poderei vir a provocar se eu própria vier a partir…, e noutras causas e faltas que possam relacionar-se com a morte, e por mais que tente pensar que esta quadra é de vida… sem querer, penso sempre e sempre na desdita.
E fecho os olhos e concentro-me vezes a fio: pensa na vida, vá, pensa na vida... mas é escusado, porque mesmo de olhos fechados e concentrada, penso imediatamente na morte!
Desisto exausta.
Então encho a casa de luzes e de estrelas e de luas, muitas… E fico quietinha lá debaixo das luzes a esforçar-me por não pensar em nada senão nas ondas cintilantes que preenchem o meu espaço. Não devo pensar em nada no natal, depreendo, porque só consigo, por mais que tente, pensar na morte.
E penso na morte dos meus, e na morte dos outros, e nas tantas mortes já morridas e nas que ainda estão por morrer…
Sacudo-me para livrar-me dos pensamentos ensombrados, quase pecaminosos e, por momentos, eis que até consigo! Nessas alturas, e por segundos, vejo então, e mentalmente, a imagem de um menino dador de vida a nascer numa noite relentosa, mas com calores, mas logo me tange o gosto um fel meloso, e sinto a presença dos que partiram, dos que não comem, dos que tremem, e dos sozinhos, dos tantos que padecem dos tantos padecimentos possíveis, e a imagem daquele bambino rotundo e alegre dos quadros renascentistas se desvanece.
A folha de rosto do meu natal psicológico é de rudeza e de dor, pestilento e cavernoso, mas com as luzes que coloco portas adentro, construo um mundo imaginário e fico nele, ponho nele os meus bonecos de vida, enquanto eles não sabem que, afinal, no natal pensamos mais nos nossos mortos do que durante a quadra pascal.
É por isso que do fundo de mim desejo a todos que consigam fechar os olhos e pensar na vida, durante esta quadra marcada a tons de um rubro vivo e infinito, como a … morte.

terça-feira, dezembro 18, 2007

Jazz Klub

Na noite de 11 de Dezembro, no Jazz Klub Tygmont, em Varsóvia, assisti a um concerto que não esquecerei tão cedo, pelos Krzysztof Herdzin Trio. Não há dúvida de que em Varsóvia tudo pode acontecer, e ainda bem, por agora, já bem longe das tantas ruínas sangrentas...

quinta-feira, dezembro 06, 2007

Thanks Lucien

AbrAxas



assim parto para Varsóvia
cheia de utopia na bagagem
e com uma mala na mão cheia de textos
e de imagens
e de cigarros
hasta...
c.

I'm a little girl...

Air - Once Upon a Time Video



«No time before it's too soon
No time after it's too late
Time's getting old, time's over now
Don't try to be on time
Don't try to run after time
Time's getting on, time's over now

I'm a little boy, you're a little girl
Once upon a time
I'm a little boy, you're a little girl
Once upon a time
Time's getting on, time's over now
I'm a little boy, you're a little girl
Once upon a time
I'm a little boy, you're a little girl
Once upon a time
Time's getting on, time's over now

I'm a little boy, you're a little girl
Once upon a time
I'm a little boy, you're a little girl
Once upon a time
Time's getting on, time's over now
I'm a little boy, you're a little girl
Once upon a time
I'm a little boy, you're a little girl
Once upon a time
Time's getting on, time's over now ...»

segunda-feira, novembro 26, 2007

ode à fadiga

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket



Se me perguntardes:
Porque andas fatigada?
Nem saberei responder.

Direi apenas que a vida fatiga tanto que perdes a própria medida do teu cansaço.
E que te cansas porque estás viva, sem propriamente te cansares dela.
É como que um feitiço, um mistério, uma sinistra assombração, essa de te sentires fatigada por nem saberes porquê.
E de facto não sabemos porque nos fatigamos porque não queremos fazer uma lista, um rol tremendo de situações que nos cansam, uma longa e fatigante lista de assuntos que nos enfadam, uma longínqua folha de texto com vários pontos de emoções que nos assolam e que nos esgotam, que gastam um bom punhado de células que morrem, a cada letra que escrevemos.
Porque andas fatigada?, perguntas tu.
Não saberei dizer-te, porque estou cansada demais para te dar respostas.
Certo é que chegarei ao porto, mesmo cansada, e que no porto encontrarei a âncora, mesmo que velha, e que lá ficarei presa, ó altíssimo, e que dela me cansarei, porque continuarei viva.

da orientação ou vocação para as artes VII

Nunca poderemos solver este mistério de artista genial. E nem o próprio criador conhecia a origem do seu engenho artístico desassossegando-se, não obstante, com essa sua característica de homem invulgar, facto que o levou à produção obsessiva de obras de arte inexcedíveis em qualidade. Na obra poética que nos legou, Miguel Ângelo demonstra esta sua preocupação, quando imagina ser a criação artística o fruto de um êxtase metafísico.

A especulação em torno da origem do génio artístico fascinou, de facto, imensos teóricos, ao longo da historiografia artística. Autores como Petrarca, Boccacio, Dante e, como vimos, o próprio Miguel Ângelo na Itália humanista, ou Francisco de Holanda, no Portugal de Quinhentos, entendiam a pintura como uma arte de origem divina e o pintor (como alter deus), pintando por divina força e imitando o homem à semelhança de Deus Eterno que foi, justamente, o primeiro pintor.

Durante muitos anos, particularmente durante e após o século XVI, os grandes artistas eram entendidos como uma espécie de santos, incarnando, nas suas obras e no seu próprio ser, a revelação divina. E esta visão do artista como fabricador de mundos não está, ainda hoje, longe dos nossos horizontes teóricos. Crê-se que o pintor possui uma capacidade para ver o mundo que está longe da nossa visão profana.

Já Francisco de Holanda entendia que o maior pintor não pinta aquilo que vê na natureza mas antes aquilo que vê com seus olhos interiores, aquilo que vê no seu entendimento solitário e quieto, aquilo que vê como uma aparição vinda do céu. Trata-se aqui de uma verdadeira teoria do génio, ou do pintor como um ser sagrado, descrita pelo próprio autor, numa (suposta) conversa com Miguel Ângelo e escrita em 1548: os de engenho já trazem do seu próprio trabalho, quando nascem, gosto e amor àquilo que são inclinados e que lhes pede seu génio [Francisco de Holanda, Diálogos de Roma, edição de José da Felicidade Alves, Livros Horizonte, Lisboa, 1984].

Trata-se aqui de uma visão neoplatónica e transcendentalista da criação artística que culminou na aberta classificação de alguns artistas como divinos (e nesta parentela de talentos evangélicos incluem-se o divino Miguel Ângelo, ou o divino Morales, na vizinha Espanha) mas que não está longe de alguns pressupostos que vieram a desenvolver-se, como a noção de alguns poderes inatos que criam no sujeito uma necessidade, ou uma inclinação para determinada tarefa cumprida através do génio.
Os estudos da psicologia e da sociologia abriram estes caminhos de verificação que se entendem como mais concertantes neste registo de pesquisa sobre a vocação ou orientação para as artes. Dos dotes transcendentais passaram então, e definitivamente, a aceitar-se outro género de factores, como o mundo das inclinações, ou das aptidões, ou das motivações que se inter-relacionam com o ambiente exterior enformante e que determinam uma solução mista entre a genética e o emolumento social.

Esta vontade de oferecer-se ao mundo não é comum a todos os indivíduos. Muitos há que querem, efectivamente, dar-se, expelir-se, explicar-se mas falta-lhes o que eles não conseguem encontrar na sua pesquisa de si e angustiam-se, frustram-se e fustigam-se, podendo depois enveredar por outro caminho de substituição. Mas outros indivíduos conseguem escapar a essa frustração dando lucidez às aptidões mais secretas e, mediante um árduo trabalho de sistematização, exercitando-se quase doentiamente, conseguem ultrapassar-se numa conquista do mundo e numa abertura efectiva de si, para o real. Resta depois outro cômputo de homens, feito daqueles que não sentem, nem nunca sentiram, qualquer necessidade de criação.

Numa desejada síntese, podemos então verificar existir uma vocação para as artes e uma vocação para a Arte no seu sentido mais absoluto e extremo. Qualquer uma dessas vocações, que possui uma origem marcadamente psicossocial, pode trabalhar-se ou, por outro lado, pode ficar encoberta no caminho da vida dos sujeitos que a possuem. Se essa vocação conseguir despertar no sujeito, ele deve sistematizar essa inclinação através do estudo e do exercício mas, por outro lado, ela pode existir, ou persistir silenciosa, apagada na vontade consciente de verter-se e tem, nessa altura, de procurar-se, na orientação, para dar-se a conhecer.

Não obstante todas estas sugestões, sem o constrangimento para completar-se o mundo e sem o talento para o voo por sobre os homens, não consegue fazer-se um artista.

Coimbra 3 de Maio de 2001.

sexta-feira, novembro 23, 2007

com um brilho nos olhos



há pouco menos de um ano, o meu pequeno Afonso, então (e ainda) com 4 anos, participou na sua primeira experiência como ilustrador de livros, em conjunto com os seus colegas de escola. O livro ficou muito bem e ele contentíssimo, claro, pensando que escrevera um livro de histórias inteirinho (:fui eu que fiz!).

Amanhã é a apresentação desse interessante volume titulado "descobre as plantas!" (Museu da Ciência, UC, Coimbra) e lá vamos nós, para brindar com sumo fresco e sorrisos ardentes de uma paixão sem limites, é sua primeira participação numa publicação em livro ilustrado com cores benovolentes!

da orientação ou vocação para as artes VI

Como historiadora, podia arrolar comprovadas famílias de artistas, apontar nomes e obras, de pais com filhos arquitectos, escultores, pintores e músicos, para depois verificar como a orientação e a herança genética dos criadores foi magnânima no processo de carreira individual dos descendentes. De facto existiram, e ainda existem, inúmeras famílias de artistas. E que quer isto significar? Que este género de aptidão circula nos genes dos indivíduos, ou que o ambiente familiar determinou a vocação em esteira para as artes? Poderemos nós conjecturar que a laboração nas artes surgiu num determinado jovem porque a família o coagiu a enveredar por esse caminho de vida através da estimulação de determinadas capacidades?

Sabe-se que existe uma grande correlação entre os factores ambientais e sociais, e a hereditariedade, pelo menos ao nível de influência no coeficiente de inteligência e no comportamento, entre outras áreas mas, e ao nível do desenvolvimento da capacidade para produção de obras de arte?

A historiografia da arte desenvolve, se bem que desanexada dos propósitos objectivos da psicologia, uma metodologia que pode ajudar-nos nesta apreciação já que, de uma forma geral, quando pretende fazer-se a biografia de um artista, procuram-se os motivos para o desenvolvimento das aptidões artísticas verificadas no indivíduo em apreço. Pesquisam-se primeiramente os parentes mais chegados, recuando-se depois, se necessário for, a gerações anteriores. Procuram conhecer-se as actividades, a cultura, o meio económico e social e as inclinações desses sujeitos, de forma a entender-se mais capazmente esse agente de cultura em causa. Mas o historiador não pesquisa estas fontes para demonstrar as componentes genéticas do artista, fazendo-o, em parte, por aferição subjectiva, e por outro lado para integrar o sujeito num lugar e num espaço sociocultural enformante, que também é o seu lugar na história.

Numa considerável amostra de sujeitos pesquisados ao longo dos vários séculos precedentes, conclui-se que, de facto, o artista biografado possuía pelo menos um parente com demonstrada tendência para as artes —sem que, todavia, esse parente tenha, necessariamente, de possuir inegáveis talentos artísticos [este fenómeno da esteira familiar de artistas compromete-se, em determinadas conjunturas históricas, com motivos de razão prática e social, mais do que com processos estritamente biológicos, ou psicológicos. Durante a Idade Moderna, era comum que o filho, ou que um apaniguado, seguisse o ofício já enraizado no seu núcleo social mais chegado por comprometimento económico e social. Exemplos radicais como os que podem verificar-se para a época moderna portuguesa dos arquitectos Arruda, da extensa família artística dos Frias, dos parentes Diogo Pires-o-Velho e o-Moço, da família Ruão, etc., não constituem excepção, e fazem parte de um largo cômputo extensível no tempo e no espaço, porque este fenómeno verificou-se um pouco por toda a Europa coeva].

Mas se encontramos infinitas esteiras de descendência artística, também conhecemos outros tantos casos que nos permitem duvidar que estamos perante uma regra: o famosíssimo pintor renascentista Piero della Francesca era filho de um sapateiro, e Botticelli de um curtidor de peles.

Vasari, um artista e teórico das artes da Itália quinhentista escreveu, na sua Vida dos Pintores, publicada em 1550, que o mestre de Giotto, chamado Cimabue, era oriundo de uma nobre família florentina. O seu pai enviara-o a um frade seu parente que ensinava noviços em Santa Maria Novella, mas o jovem Cimabue interessou-se mais pelo trabalho dos artistas que ali pintavam na capela dos Gondi, abandonando o estudo para passar o dia inteiro a ver labutar os referidos pintores, pelo que seu pai, bem como os ditos pintores, verificando que ele tinha aptidões para a pintura, acabou por ceder à sua vocação, tendo Cimabue, ajudado pela sua natureza muito inclinada para a arte, ultrapassado muitíssimo o estilo da sua época. Outro caso conhecido é o do próprio Giotto que, sendo pastor, pintava ovelhas muito ao natural nas pedras dos pastos da Toscana, em Vespignano, tornando-se depois num dos mais famosos artistas do gótico italiano.

Apesar de tudo, a historiografia da arte também permite concluir que de facto existe uma forte aclimatação fraternal que influencia grandemente o desenvolvimento das aptidões futuras de um, ou de outro artista de maior ou menor fortuna. Podemos imaginar o exemplo, comum ao longo da história, do pequeno filho nascido de uma família de lavradores e colocado, ainda muito jovem, na oficina de um artista para aprender o ofício, no cumprimento de uma aspiração paterna que queria ver o filho vingar, social e economicamente, no mundo arredado da lavoura.

Durante um largo período da história, esta metodologia de ensino e de ingresso no mundo das artes era radical, já que desde a Idade Média mais longínqua até ao dealbar da contemporaneidade, nalguns lugares da Europa recenseada, a criança era literalmente posta em casa do seu mestre, raras vezes era visitada pelo pai ou por outro parente, e ficava em permanente contacto com as lides familiares e artísticas do seu mestre, contactando com as obras em produção, ou com os modelos e com livros de ensinança e com o grupo de encomendantes e de mecenas. A criança era afastada do ambiente familiar original e era, certamente, muito influenciada pelo novo mundo do seu mestre, alterando-lhe, de certa forma, grande parte das motivações primeiras e do seu comportamento. Não obstante, e independentemente da fortuna deste jovem aprendiz, não podemos contabilizar o seu grau de aptidão inicial e posterior para o desempenho da arte.

Num exemplo mais concreto temos o caso, muito divulgado pela da especulação romântica, que gravita em torno da origem do talento de Miguel Ângelo Buonarroti. Discute-se enormemente sobre a sua educação, sobre o facto de ter sido colocado, ainda menino, num lar situado nas cercanias de uma enorme pedreira, e sob a guarda de um canteiro, facto que lhe terá desenvolvido o gosto pela roca, o gosto pela descoberta das formas ocultas nas pedrarias, o gosto pelo pó da pedra e aquela visão do mundo sui generis, que foi a deste magnífico e inigualável homem das artes. Aliás, o próprio Miguel Ângelo pronunciou-se sobre esta afortunada marca de vida quando, em conversa com Vasari, lhe confessou que se tivesse sido criado noutro lugar, longe do pó da pedra alva, que para ele era tão vital como o leite de sua ama, nunca teria enveredado pela escultura...

Ora, se ao invés da sua educação em casa da ama, Miguel Ângelo tivesse sido acompanhado pela sua família de classe média e burocrata da Toscana renascentista, como teria ele desenvolvido aquela apetência tremenda pela escultura? Aliás, para a família Buonarroti, o desempenho as artes, que então eram entendidas como manuais, constituía uma desonra vergonhosa.

Qual foi então o papel do seu ingénium pessoal, ou da orientação, promovida no convívio de nascença com a pedra, no contacto com Domenico Ghirlandaio ou com Granacci, seus primeiros e superadíssimos mestres, no processo do desenvolvimento do seu talento? Muitos biógrafos de Miguel Ângelo acreditam apenas no seu auto-didatismo, estendendo-se o seu talento evangélico no contacto fecundo com as obras de arte, e com a filosofia da casa de acolhimento durante o final da infância e no dealbar da adolescência, na corte dos poderosos Medici.